A relação entre psicanálise e cultura esteve presente desde Freud, quando este se utilizou de histórias oriundas da mitologia (como o clássico mito de Édipo) e obras literárias como inspiração para propor conceitos teóricos que pudessem lançar luz sobre alguns aspectos da experiência humana.
Na clínica psicanalítica atual, esta relação permanece, pois não só as obras literárias, mas também os filmes, músicas e produções artísticas em geral frequentemente se presentificam na relação entre o terapeuta e seu paciente.
Muitas vezes, os próprios pacientes trazem para a sessão letras de músicas ou trechos de filmes, pois sentem que eles têm o potencial de traduzir ou ampliar o sentido da experiência vivida. Aliás, essa “tradução” se dá também fora do contexto terapêutico: quem nunca se utilizou de uma canção de amor para dizer, melhor do que conseguiríamos expressar com nossas próprias palavras, como nos sentimos em relação a alguém especial? De forma bastante similar, esse processo ocorre na relação terapêutica: um elemento cultural (poesia, música, filme…) pode ser utilizado para traduzir um sentimento.
Por outro lado, e quando o paciente não tem o hábito de trazer esse tipo de associação, mas elas ocorrem ao terapeuta?
Se o psicólogo, ao ouvir o relato de um paciente, associa este com um filme, uma música, ou uma poesia, isso pode fazer parte da conversa? Bom, se o terapeuta deve ou não falar sobre o que lhe veio à mente, no contato com determinado paciente, cabe a este avaliar caso a caso a pertinência da associação.
Porém, frequentemente os psicoterapeutas de orientação analítica se utilizam de elementos da cultura para ampliar o sentido da experiência vivida na relação com seus pacientes, conversando com estes sobre obras culturais que lhes vieram por associação. O profissional que trabalha com a mente quando tem contato intenso com filmes, séries, livros, músicas, compõe um arcabouço cultural que frequentemente enriquece o trabalho, permitindo sonhar sobre as vivências com os pacientes.
Assim, compartilho a seguir um “sonho” que tive a partir do contato com a série Stranger Things, uma produção da Netflix que, abordando temas relativos à infância e ao sobrenatural, tem a capacidade de tocar nossas emoções, impactando-nos intensamente.
Estados de desamparo no Mundo Invertido

Quando sofremos uma perda, nos sentimos sozinhos e desamparados. Há também o sentimento de abandono pelo objeto perdido, mesmo que não haja um abandono de fato.
A série Stranger Things apresenta, sob vários aspectos, o tema da perda: a perda do filho pequeno da personagem Joyce e a oscilação desta entre a crença na sobrevivência do filho Will e a possibilidade efetiva de sua morte; a perda da época da infância com a chegada da adolescência; a perda de uma situação conhecida, que introduz então uma situação nova, desconhecida, em que a verdade dos fatos se encontra suspensa.
Daí o Suspense: não se sabe quem é a garota misteriosa de cabeça raspada, nem o paradeiro/destino de Will, nem a origem da criatura destruidora que passa a assombrar os personagens. Trata-se de uma situação que introduz um clima de tensão, de angústia, justamente pela suspensão do que era até então dado como fato conhecido, gerando um estado de incompreensão, em que elementos essenciais estão por definir.
O Mundo Invertido, onde Will se encontra exilado e isolado, é um lugar inóspito, em que parecem faltar as coisas que são essenciais para que uma pessoa se sinta amparada e segura: falta luz, falta oxigênio, falta calor, faltam pessoas que possam oferecer ajuda e companhia calorosa.
De toda essa ausência, surge então uma presença perseguidora e violenta: O Demogorgon, criatura fruto da fantasia produzida no jogo imaginativo de Role Playing Game (Jogo de Interpretação de Papéis) das crianças, concretizada no enredo do seriado como o monstro que escapou do “Mundo Invertido”.
Não é difícil compreender porque a história nos “fisga” (ou seja, porque nos identificamos) – acontece que todos nós, diante de uma ausência sentida como perda devastadora, criamos também uma presença ameaçadora em nossa fantasia: sentimos que seremos destruídos pela vida.
Só que, caso não estejamos num estado psicótico, não criaremos um monstro destruidor, mas projetaremos a fantasia de ruína em nossa carreira, vida amorosa, relacionamentos, entre outros setores possíveis.
Compreendendo a trama

A descida a um “mundo inferior” não é uma característica exclusiva da trama de Stranger Things. Na verdade, muitas histórias, de diferentes culturas, contém narrações de aventuras em que ocorre a descida a um lugar escuro, inóspito e perigoso, como parte de uma importante missão.
O mito da Descida de Inana, da mitologia suméria, narra a descida da deusa Inana ao “Mundo Inferior” para comparecer aos ritos funerários por ocasião da morte do marido da deusa Erishkigal, sua irmã maligna.
Assim como o Will de Stranger Things, Inana também fica desprotegida ao adentrar o “Mundo Inferior”: perde uma peça de roupa para cada um dos Sete Portões que deve atravessar, entregando amuletos que a protegiam. Chegando ao encontro de sua irmã, Inana é transformada em um cadáver, permanecendo assim por três dias, até que entidades enviadas por outros deuses vêm ao seu auxílio e a ressucitam.
Segundo a interpretação de Joseph Campbell, estudioso de mitologia que foi influenciado pelo trabalho de Carl Jung e Sigmund Freud, o mito representa a passagem por uma situação de morte, em que entramos em contato com partes nossas que se encontravam distantes da consciência – a deusa-irmã Erishkigal representaria o seu oposto e, ao mesmo tempo, seu próprio eu insuspeitado – e que podemos recuperar através da “descida”.
Uma situação de mudança abrupta pode nos levar a um estado em que nos sentimos desamparados, desprovidos dos elementos que estavam presentes na situação anterior e conhecida, e que nos proporcionavam uma sensação de segurança.
Ao mesmo tempo, estando mais “desnudos”, entramos em contato mais direto com nossas angústias e conflitos, o que pode possibilitar uma experiência de amadurecimento emocional, integrando à personalidade partes de nós que se encontravam mais distantes da consciência.
De outra forma, podemos entender que passar por experiências de sofrimento é algo que participa do curso natural da vida, sendo necessário ao desenvolvimento psíquico.
Em uma época em que se vive em meio a uma cultura de grandeza, em que se propaga a noção idealizada de busca de uma felicidade constante e eterna, em que se espera o sucesso a troco de qualquer coisa, e de preferência sem passar por nenhuma experiência de derrota no caminho, é bom se deparar com uma história que pode remeter à descida de Inana, ao lidar com o desconhecido e com o sofrimento inerente às mudanças da vida.
Encontrar uma história como a de Stranger Things nos permite, através dos personagens, encontrar uma via de escoamento para a vivência de emoções intensas: o medo e ansiedade gerados por uma situação em que é preciso tolerar o desconhecimento, a angústia causada pela perda de uma situação passada, o estranhamento e fascínio despertados pelo diferente.
Aliás, a personagem “Eleven” (garota com poderes paranormais que escapa do controle de seu pai, um cientista que realizava experimentos bizarros com ela) surge como uma curiosa representante do quanto o “diferente” pode gerar estranhamento e persecutoriedade, ao mesmo tempo em que evidencia o enorme poder que surge do encontro e aproximação com ele; seja este o diferente no outro (Eleven), seja o diferente-oposto que podemos encontrar em nós mesmos (Inana e sua irmã-deusa), ao qual o primeiro nos remete.
AUTOR
VICTOR MALERBA
Victor Malerba é psicólogo, atua em consultório particular e no GEATA (Grupo Especializado no Atendimento Terapêutico ao Autismo) em Ribeirão Preto – SP. É psicólogo aprimorando em Saúde Mental pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP.