Com a tendência gradual, mas crescente, de realização de psicoterapia online, sabemos que muitos psicólogos ainda veem com desconfiança a possibilidade de promover mudanças através do meio online.

Mais do que debater se a psicoterapia online é melhor ou pior, o texto relata, de forma breve, a experiência de dois psicoterapeutas com casos em que, segundo eles, o contexto “online” fez toda a diferença, gerando um tipo de intimidade que, surpreendentemente, não existiria no atendimento com a presença física.

O objetivo com este texto é começar trazer um pouco do que se tem feito com a psicoterapia online em outros países, para que possamos refletir e nos prepararmos, afinal, é uma questão de tempo até podermos atender desta forma.


Neste instigante texto, os psicoterapeutas Anastasia Potekhina Giré e José Burgo, que fazem psicoterapia com clientes em todo o mundo através do Skype, compartilham insights sobre as peculiaridades de poderem “entrar” nos espaços íntimos das casas de seus clientes.

PSICOTERAPIA ON-LINE

Eis um fato que temos constatado, ainda que empiricamente:

Quando engajados na psicoterapia através do Skype ou outro sistema de videoconferência, os clientes frequentemente comparecem às sessões, mesmo quando se sentem muito doentes ou frágeis para frequentar a escola ou ir ao trabalho.

Parece que, como eles se encontram com seu terapeuta on-line a partir do conforto de casa, às vezes envoltos em cobertores ou uma cadeira confortável, a tentação de desmarcar é muito atenuada.

E o mais interessante, é que às vezes eles fazem suas sessões na cama mesmo, segurando o “terapeuta virtual” em seu colo.  De fato, há clientes preferem realmente fazer suas sessões na cama.

O texto que você vai ler agora, contém curtos exemplos da realidade de dois psicoterapeutas que realizaram contínuas sessões semanais com homens e mulheres que se conectaram a partir de seus quartos, geralmente vestidos e deitados em cima dos lençóis, muitas vezes encostados na cabeceira da cama com travesseiros.

Será que o local da sessão que um cliente escolhe frequentemente, já é algo que nos dá informações sobre seu momento atual?

Continue lendo para descobrir!

TERAPEUTAS NA CAMA COM SEUS CLIENTES

Embora não tenhamos feito pesquisas oficiais sobre o tema, acreditamos, como terapeutas, que a escolha de ter sessões no próprio quarto fornece informações importantes que podem ser usadas no contexto da terapia.

Este novo “setting” levanta muitas questões incômodas, mas fascinantes:

  • Será que isso significa que nós, na condição de terapeutas, estamos deixando de preservar limites?
  • Será que estamos permitindo que nosso papel profissional seja banalizado?
  • Seria alguma transferência erótica (ou ainda mais preocupante, a contratransferência erótica) no trabalho?

Ainda não sabemos, mas estamos caminhando neste sentido.

De qualquer forma, acreditamos que as sessões ocasionais na cama podem ser úteis, por possibilitarem uma regularidade que poderia ser interrompida por doenças ou algum outro fator.  Claro que, neste contexto, os terapeutas precisam prestar atenção aos limites e aos problemas de transferência, mas se estivermos atentos, podemos também focar no propósito e significado desta incomum escolha – a de levarmos o nosso terapeuta para a cama.

Kyle e Lisa são dois clientes cujas histórias mostram como as sessões na cama podem ser construtivas e reveladoras.

KYLE E A ESPIRAL DA VERGONHA (JOSEPH BURGO)

No início de nosso trabalho conjunto, Kyle costumava sofrer daquilo a que nós nos referimos como a “espiral descendente da vergonha”.

Temendo que pudesse ser humilhado em algum evento futuro, como uma entrevista de emprego, ele sempre adiava o compromisso até o último momento; mas isso só o enchia de vergonha e o fazia temer ainda mais a entrevista remarcada, o que o levaria a remarcar mais uma vez com outra desculpa esfarrapada, e assim por diante, até que o empregador perdesse o interesse.

Eis aí a espiral.

Com o passar do tempo, Kyle acabou se tornando tão dominado pela vergonha de seu comportamento, sentindo-se tão “perdedor”, que chegou a se afastar do mundo para sua cama, muitas vezes, por dias a fio.

Às vezes, mesmo online, ele cancelava uma das duas sessões que tínhamos na semana, tudo de última hora; em outros dias, ele dormia no horário da sessão e me enviava um e-mail muito mais tarde.  Faltar aos compromissos intensificou seu senso de vergonha e fracasso, o que tornou ainda mais difícil para ele sair da espiral descendente.

Dominado pela vergonha, ele não conseguia sequer chegar a mim para obter ajuda.

Interessante é que, eu sabia reconhecer quando Kyle estava à beira de um desses retiros, apenas lendo sua expressão facial … ou melhor, sua total falta de expressão quando ele aparecia na tela.

Seu jeito normal de ser era bastante animado e envolvente; ele tinha um bom senso de humor e um sorriso atraente.

Entretanto, nas garras de uma espiral descendente de vergonha, seu rosto parecia amortecido, como se estivesse dormente. Embora tivéssemos uma relação calorosa e amigável, nesses momentos ele me dava uma impressão de total indiferença, como se não sentisse nada por mim.

Parecia encapsulado e separado do processo.

Normalmente eu podia prever quando ele iria perder as próximas duas ou três sessões. E assim acontecia. Então, depois ele ressurgia de seu retiro de vergonha, buscando reengajar-se comigo e com o mundo em geral, embora nós nunca entendêssemos exatamente por que e como ele se recuperava.

Parecia quase biológico, como se ele tivesse que passar por um ciclo fisiológico sobre o qual não tinha controle.

E assim prosseguimos, entre sessões e sumiços, por seis ou sete meses, com a espiral descendente de vergonha aparecendo a cada poucas semanas, aproximadamente.

Não importava quantas vezes eu o encorajasse a me procurar, ou expressasse calorosamente minha preocupação, nada parecia ajudá-lo a suportar a sessão a partir de sua cama.

Na verdade eu já começava a me sentir frustrado pelos muitos compromissos perdidos, e me perguntava se eu estava realmente o ajudando.

Até que as coisas começaram a mudar.

Durante uma de nossas sessões, no final deste período de espiral, ele apareceu com a “cara de morto”, como nos referíamos a ela, e eu não esperava vê-lo para a nossa segunda sessão no final da semana.

No entanto, me conectei no Skype na hora marcada e esperei por ele.

Em poucos minutos de sessão, recebi um e-mail de Kyle dizendo que estava atrasado, mas logo estaria conectado. Sentei-me em frente ao computador e esperei. Cerca de cinco minutos depois, o Skype mostrou Kyle “online” e ele logo iniciou a chamada.

Minha tela ganhou vida.

Normalmente, Kyle falava comigo sentado a uma mesa em seu apartamento, ou às vezes em uma pequena sala de conferências, no seu local de trabalho. Hoje, ele estava na cama, deitado de modo que seu rosto com a barba por fazer apareceu de lado na tela. Seu cabelo estava amarrotado. Ele ainda estava com a expressão de rosto morto, mas – oba -pelo menos ele tinha aparecido.

“Está tudo bem?”, Ele perguntou. “Eu não tinha certeza se você se importaria de falar comigo na cama, mas eu não conseguia me levantar.”

“Você está aqui”, eu assegurei a ele. “É isso que importa.”

Então Kyle me contou sobre os últimos dias.

Ele tinha realmente caído em uma espiral descendente de vergonha após a última sessão, e se recolheu em seu quarto. Havia cancelado alguns compromissos e pisou na bola com pessoas importantes, mas não queria ficar em isolamento por mais tempo.

Parece que havia tido um “clique”.

Eu podia senti-lo procurando em meu rosto alguma desaprovação ou julgamento; mas em vez disso eu disse a ele que eu estava muito satisfeito por ele ter conseguido manter nosso compromisso.

No decorrer da sessão, Kyle sentou-se, com as costas contra a cabeceira e com seu computador posicionado no colo. Embora não estivesse exatamente animado, sua expressão não parecia completamente imóvel.

Ao final da sessão ele tinha resolvido sair da cama depois que desligamos, e assim fez. Quando ele apareceu na tela para a próxima sessão, estava completamente vestido e em “modo de trabalho”.

O que aconteceu aqui?

Tudo parece indicar que a sessão na cama foi um espaço de transição para Kyle, permitindo-me, em seu lugar de reclusão, ajudá-lo a preencher a lacuna e voltar a se reconectar com seu mundo. Eu considerei o fato de ele ter estendido a mão para mim como um sinal de progresso e, de fato, ao longo do semestre seguinte, as espirais descendentes de vergonha diminuíram tanto em frequência quanto em duração.

E então eu pergunto: Será que Kyle teria se mantido no processo caso tivesse que se deslocar fisicamente até um consultório?

O BLOQUEIO ARTÍSTICO DE LISA (ANASTASIA POTEKHINA GIRÉ)

Lisa era uma mulher atraente de sessenta anos, cujo casamento com um empresário de sucesso permitiu-lhe ir atrás de sua paixão pela arte. A primeira vez em que nos encontramos, Lisa estava deitada na cama, fraca de uma gripe recente.

Uma brilhante tela floral apareceu na parede atrás dela.

Ela então me disse que era pintora, e orgulhosamente anunciou que tinha seu próprio “atelier” em casa. A pintura na parede era uma das suas.

Eu gostava de me encontrar com a Lisa, mesmo que a decoração – a roupa de cama florida e uma mesa de cabeceira com um pote de creme para o rosto nela – me fizessem sentir bastante desconfortável e consciente dos limites sendo cruzados.

Lisa pediu desculpas por “me receber na cama”, mas não parecia desconfortável com isso.

À primeira vista, Lisa parecia ter tudo que uma mulher de sua idade poderia desejar: dois filhos adultos, o apoio do marido e um passatempo muito emocionante.

Mas ela reconheceu um sentimento de profunda tristeza e vazio quase físico, que não podia explicar ou compartilhar com ninguém. Na verdade, nos últimos meses, ela tinha sido incapaz de pintar e estava constantemente evitando seu estúdio.

Descrever seu bloqueio artístico, incomum para ela, a fez corar de vergonha.

À medida em que as semanas passavam ela continuou com as sessões em sua cama. Parecia perfeitamente saudável, sem sinais de depressão ou qualquer outra condição debilitante.

Na verdade, o problema maior parecia estar em mim, como terapeuta. Incapaz de escapar daquele quarto, minha inquietação continuou crescendo e eu gradualmente comecei me sentir desconfortável.

Afinal, o que Lisa estava tentando transmitir por “manter-me em sua cama”?

Quando eu finalmente compartilhei minha curiosidade sobre a sua escolha de lugar para nossas sessões, ela a princípio pareceu surpresa. Afinal, ela sempre pensou que a terapia online “era aquela coisa que você poderia fazer em qualquer lugar.”

Então começamos a explorar o que a “cama” representava para ela. Perguntei se era um espaço que normalmente dividia com o marido, Charles.

Não, eles estavam vivendo em quartos separados nos últimos dez anos, pois os problemas de sono de Charles o mantinham acordado durante a maior parte da noite.

No início, ele costumava fazer visitas frequentes ao seu quarto; eles muitas vezes ficavam na cama juntos, conversando e, por vezes, fazendo amor.

Com o tempo, suas visitas se tornaram cada vez mais raras; agora, ele passava por seu quarto com apenas um rápido “Olá”, e ia para seu próprio quarto. Ao compartilhar isso pela primeira vez, Lisa pareceu profundamente triste, sua alegria habitual fora substituída por lágrimas.

Entendi então, que a cama havia se tornado um lugar solitário onde ela se sentia presa, indesejada e velha demais para o sexo.

Expressar esses sentimentos verbalmente, seja para o marido ou para mim, sua terapeuta, era muito difícil, por que ela se sentia muito envergonhada desta parte “patética e necessitada” de si mesma.

E aí podemos nos perguntar: Embora Lisa não conseguisse expressar seu desejo de contato sexual com o marido, será que ela estava, inconscientemente, me fazendo de substituta ao me levar para a cama?

Talvez…

De qualquer forma, eu a incentivei a assumir o risco e dizer a Charles como ela se sentia.

A confissão o pegou de surpresa: ele não tinha ideia de que sua esposa ainda o desejava, e tinha pensado que ela preferia que ele mantivesse distância.

Então, após este simples ato, Charles logo voltou a visitar seu quarto regularmente.

Agora que ela tinha me substituído por um companheiro mais apropriado de “cama”, Lisa então começou a fazer as sessões de seu atelier, um local muito mais apropriado para a terapia.

Para a nossa última sessão, Lisa estava vestida com sua roupa de trabalho – claramente uma camisa velha de Charles, de grandes dimensões para ela. Sem exageros, posso dizer que ela estava borbulhando com uma nova energia, e anunciou-me que o seu bloqueio artístico havia, “sumido como por magia.”

Ela era capaz de pintar novamente!

BEM DE PERTO

Estas duas breves histórias dos autores, que obviamente apresentam os processos de forma simplificada, ilustram como a psicoterapia online pode facilitar o progresso e fornecer informações que as sessões presenciais, a princípio, não podem. (Pelo menos, não tão rapidamente).

Sem dúvidas, Kyle acabaria por ter voltado ao consultório depois de um ataque vergonha, mas o “meio-termo” da terapia na cama forneceu uma ponte útil.

Semelhantemente, Lisa acabaria por ter comunicado o seu isolamento e desejo de intimidade com uma terapeuta em pessoa, mas sem a configuração visual que levou sua terapeuta on-line a se aprofundar mais, ela provavelmente teria levado muito mais tempo para isso.

Mas onde queremos chegar com estas afirmações?

É óbvio; queremos combater o preconceito.

Nas discussões sobre psicoterapia online, profissionais e leigos normalmente a veem como uma forma inferior – senão inaceitável- de psicoterapia.

No entanto, depois de praticarem no ambiente on-line, bem como em pessoa, por vários anos, os autores passaram a acreditar que não é nem melhor nem pior, mas verdadeiramente diferente.

Experiências como a de ser “levado para a cama” por nossos clientes on-line, muitas vezes fornecem uma espécie de insight que não estaria disponível para os terapeutas que só veem seus clientes em um consultório.

Nós também descobrimos uma intimidade especial que é idiossincrática à terapia online.

Mesmo se ambos estivessem sentados, o terapeuta em pessoa nunca iria ver um cliente, como Kyle, tão intensamente “bem de perto”. Durante uma sessão on-line, a imagem do computador muitas vezes parece análoga a uma tela de cinema preenchida pelo rosto de um ator, transmitindo alta intensidade de raiva, ou medo, ou vergonha para o público.

Embora, em certos aspectos, as sessões on-line sejam menos imediatas que a psicoterapia presencial, descobrimos que elas são ainda mais íntimas e emocionalmente evocativas nesta forma particular.

Sessões online também permitem que uma cliente como Lisa “mostre”, ao invés de apenas dizer, e como qualquer escritor de ficção irá concordar, uma cena vívida e visual envolve de forma mais eficaz o leitor do que a narrativa linear.

Os clientes que se conectam da cama, muitas vezes nos mostram algo profundamente pessoal e doloroso, que seria muito mais difícil narrar mais tarde, durante uma sessão presencial. Conscientemente ou não, eles nos convidam a testemunhar o seu mundo pessoal em primeira mão, a entrar em suas histórias, por assim dizer, em vez de ouvir sobre elas após o fato.

Isto transmite ao online o “aqui-e-agora” de uma maneira muito especial. Por mais paradoxal que seja, captar o “momento” pode ser mais fácil por meio da web do que presencialmente.

Tais momentos de intimidade real e vulnerabilidade compartilhada são preciosos, ajudando-nos a forjar uma forte relação terapêutica com nossos clientes, mesmo aqueles que podem estar a milhares de quilômetros de distância, em outro continente, e que nós nunca realmente poderemos conhecer em pessoa.

O futuro realmente chegou para a psicoterapia e, pelo menos em nossa opinião, é ótimo que isso esteja acontecendo!

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