É sabido que a história da população negra no Brasil foi se constituindo e consolidando-se com bases estruturais no racismo, trabalho escravo, abusos de ordem distintas, entre outros fatores, que por sua vez, marcam a história das pessoas negras e sua subjetividade de maneira tão intensa, a ponto de exercerem influencias visíveis nos dias atuais.

Essas marcas históricas não são o único fator a desencadear influências na vida da população negra.

Nossa sociedade mantém atitudes discriminatórias, como o racismo, enquanto uma herança histórica que ainda serve ao propósito mantenedor das estruturas sociais, que priorizam pessoas não negras, concedendo a essa parcela social privilégios e maior acesso aos direitos sociais que qualquer cidadão deveria ter acesso e que, para a população negra, esse acesso pode ser turbulento.

Uma das consequências que essas marcas podem promover na vida das pessoas negras, a qual irei abordar e desenvolver nesse artigo, é justamente a necessidade de um desempenho sempre acima da média em diversas áreas como trabalho, escola, faculdade, etc, para o reconhecimento daquele indivíduo negro enquanto uma pessoa capaz.

Você talvez possa até pensar nessa questão enquanto um fator motivacional, que pode servir enquanto impulso e que faz com que aquele indivíduo negro seja criativo, busque sempre novos conhecimentos, estude mais, se reinvente e assim cresça intelectualmente e profissionalmente.

Mas e quando todo esse desempenho elevado se dá por consequência da necessidade de manter-se num emprego, onde outras pessoas não negras, com desempenho profissionais medianos ou até mesmo baixo possuem mais reconhecimento, ou sequer precisem de um aumento de desempenho para manter seu cargo? Uma situação no mínimo perversa, não é mesmo?!

Usei aqui como exemplo as capacidades intelectuais e também as capacidades profissionais, mas esse é um problema que não se resume apenas a esses dois aspectos.

Há questões relacionadas à aparência por exemplo, as quais, julgo acontecerem em posição anterior as questões relacionadas ao intelecto e capacidades profissionais dos indivíduos negros, que por sua vez pode ser dividida em dois pilares: aparência física, envolvendo as características de fenótipo e a aparência visual, que envolve a maneira como se está trajado e como se porta.

É importante ressaltar que de maneira geral, tendemos a realizar determinados julgamentos, e isso independe de questões raciais.

Esse é um “mecanismo” humano quase que instintivo, que nos serve tanto como meio de proteção daqueles que podem representar uma ameaça, como também serve como meio de aproximação daqueles que se parecem conosco e nos transmite alguma segurança.

O problema começa quando passamos a julgar o outro de maneira moral, muitas vezes baseados por aspectos muito superficiais – como a aparência por exemplo – e que acabam por limitar qualquer possibilidade de contato com o outro, e consequentemente leva a mais julgamentos moralizantes e errôneos, o que costuma acontecer com as pessoas negras.

Esse histórico estruturalmente racista, que beneficia as pessoas não negras em detrimento das pessoas negras e que se arrasta até os dias atuais, de maneira perversa, coloca a população negra em uma posição de “dívida”, pelo simples fato de serem negras.

Caracterizo essa dívida como perversa, justamente pelo fato de que o povo negro não está em dívida com ninguém! A dívida histórica pertence a população não negra, que ainda hoje tenta (e por vezes consegue) se limpar de sua culpa, depositando essa culpa na população negra, numa espécie de “sociopatia social”.

Por isso, é importante que pessoas negras estejam fortalecidas e conscientes dessa “taxa social”, justamente para não se submeterem a pagar por algo do qual não devem.

Dito isso, gostaria de contextualizar algumas orientações de como não pagar essa taxa social, e como nós psicólogos podemos auxiliar nesse processo a seguir.

A taxa cobrada por ser negro no mundo corporativo

O mercado de trabalho e as grandes empresas, de maneira geral, costumam postular regras e condutas que julga coerentes e necessárias ao contexto organizacional. Essas regras de maneira geral, podem ser bastante invasivas ou coercitivas, a ponto de tornarem-se um preço a se pagar a quem faz parte de determinadas organizações, afetando os funcionários de maneira geral.

A taxa fica mais cara para as pessoas negras, quando determinadas organizações passam a exigir por exemplo, que o cabelo adequado seja liso ou então que não se possa trabalhar vestindo o turbante ou de cabelos trançados.

Para além das questões estéticas, existe ainda o julgamento moral de que pessoas negras possuem menor capacidade profissional para desenvolver trabalhos de maior complexidade. Muitas pessoas se espantam quando vão procurar a Secretária Adjunta de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, e se deparam com Djamila Ribeiro, mulher negra.

Como se posicionar em situações em que a a presença de uma pessoa negra causa espanto?

É necessário antes de mais nada, perceber quando a situação pela qual se está passando envolve uma manifestação racista. ]

Ainda que na atualidade passamos a falar mais sobre a negritude em si e também sobre racismo, muitos negros ainda não possuem uma consciência racial que os permita perceber que sofrem racismo em determinadas situações, e por meio dessa consciência é que será possível a tomada de atitude.

Essa atitude por sua vez, deve seguir na direção da autoafirmação de sua identidade negra e também no desvelar da atitude racista do outro. Ou seja, você não precisa submeter-se as exigências preconceituosas dos outros, o que você precisa é ser quem você é, tomar consciência de si e perceber que não é você o errado por sofrer preconceito, mas sim o outro, que manifesta atitudes racistas.

Por outro lado, nós psicólogos, podemos contribuir com a minimização desse racismo no mundo corporativo.

Tanto no processo seletivo, ao nos mantermos abertos a contratação de pessoas negras, sem julgá-las com base em crenças morais, como as demais pessoas fazem, ou até mesmo, promovendo nas empresas a conscientização sobre a importância da diversidade nas organizações e sobre o racismo existente na cultura da empresa onde você trabalha.

Afinal, ninguém melhor do que o psicólogo organizacional para propor discussões, reuniões ou palestras abordando esse tema e visando quebrar essa visão racista que pode estar acontecendo na empresa onde você atua profissionalmente.

As taxas por ser negro estudante

Uma parcela da sociedade parece perceber a dívida social existente com relação ao povo negro posicionando-se a favor de programas como o das cotas raciais nas faculdades e escolas públicas. Ainda assim, muitas pessoas (por vezes até pessoas negras), não percebem a importância de programas como esse, que incentivam e promovem o acesso da população negra a educação.

É importante contextualizar que o acesso da população negra à educação ainda é uma questão, visto que muitas crianças negras ajudam na renda familiar trabalhando, o que as impede de investir o tempo em educação. Daí a importância das cotas, que mesmo sendo um programa que possui algumas problemáticas, consegue promover o acesso da população negra às instituições de ensino.

Além disso, muitos alunos negros sofrem com relação a profissionais da área da educação que, mais uma vez, guiados por suas crenças morais ou valores deturpados, naturalizam questões como a dificuldade de aprendizado, vinculando esta dificuldade ou falta de habilidade com determinadas conteúdos com a questão racial.

Desmerecendo, dessa forma, a capacidade intelectual de alunos negros por serem negros. Como se por ser negro, o aluno consequentemente fosse também menos inteligente.

Isso sem falar sobre a invisibilização dos criadores de conteúdo ou intelectuais negros. Um exemplo dessa invisibilidade dos negros no campo da criação do conhecimento é Virgínia Leone Bicudo, mulher negra, psicanalista, essencialmente importante na construção da psicanálise no Brasil, e que é pouquíssimo lembrada ou comentada.

A tomada de consciência é sempre necessária e quando você sabe quem você é, sabe também qual o seu valor!

Se alguma dessas situações aconteceu, é importante incentivar que a pessoa não desista, pois só ela sabe as dificuldades que enfrentou para chegar no lugar onde está agora e o quanto fazer parte deste lugar é importante. A resistência por si só já é um ato político, por isso não ceder a fala de pessoas que o tentam colocar em posições fora das quais de fato se está é extremamente necessário.

O óbvio a se fazer numa situação como essa seria se esforçar mais, mostrar toda a sua capacidade e inteligência, mas ao fazer isso, só se estará pagando a taxa por ser negro (aquela que exige muito mais de você por ser negro, e beneficia pessoas não negras por esforçar-se muito menos do que você se esforçou).

A prática do psicólogo no combate a esse racismo, pensando no psicólogo de uma instituição de ensino ou até mesmo enquanto orientador, é de acolher essa demanda e mediar tanto as necessidades da instituição como também a do estudante.

Sabemos que muitas instituições de ensino acabam por dar muitos “contornos” com relação a prática profissional do psicólogo, de forma a beneficiar a instituição, em oposição ao interesse do aluno ou até mesmo do próprio psicólogo. Por isso é importante se opor à essa situação e identificar se realmente esse racismo está acontecendo na instituição de ensino, se ele emerge dos profissionais da instituição ou de alunos.

Assim, será possível pensar em estratégias de combate ao  racismo e promover tanto um ambiente propício aos estudantes negros, como também uma instituição reconhecida por saber acolher e lidar com a diversidade!

As taxas por habitar um corpo negro

A corporalidade carrega em si uma experiência social, que consequentemente influencia na subjetividade de maneiras variadas.

De um modo geral, desde a infância, pessoas negras sofrem com sua aparência fora dos padrões convencionalmente impostos socialmente, e que beneficiam pessoas não negras.

Esses mesmos padrões beneficiam pessoas negras também, quando essas de alguma maneira preenchem alguns dos requisitos dessa convenção, como por exemplo: pele mais clara, cabelos lisos, olhos claros, nariz com traços mais finos, etc. Porém, mesmo que você atinja alguns dos requisitos dessa convenção sendo uma pessoa negra, nunca alcançará os mesmos privilégios que pessoas não negras acessam.

É como se nós, negros, nascêssemos com uma dívida a ser paga e essa dívida fica sempre exposta em nosso corpo, em nossa imagem corporal, e para pagá-la, devemos então ajustar o corpo à essa convenção social que costuma nos lembrar diariamente que nascemos com o corpo errado.

Diante das exigências dessas convenções sociais, muitas pessoas negras acabam tomando determinadas atitudes, justamente para tentar se encaixar nesse padrão onde se é mais aceito.

Talvez o exemplo mais comum seja o de pessoas negras que tem o cabelo crespo, realizando diversos tipos de alisamento capilar, seja para sentirem-se mais adequadas ao ambiente corporativo ou por acharem mais fácil cuidar do cabelo alisado.  O fato é que nossa sociedade vem constantemente nos “ensinando” que cabelo crespo não é adequado, ou bonito, ou fácil de ser cuidado.

E isso não acontece apenas com o cabelo. Acontece com a cor de nossas peles, com o quão largo é nosso nariz, com o quão grossos são nossos lábios.

Acho importante dizer que as pessoas negras são livres para realizarem alisamento capilar ou então fazer uma cirurgia plástica em seus narizes, mas antes de realizarem esses procedimentos, é importante perguntar-se:

Estou fazendo isso por qual motivo? Será que estou alisando meu cabelo por ouvir do outro que ele ficaria melhor liso, ou seria mais adequado ter o cabelo liso para trabalhar em determinada empresa ou em determinado cargo? Ou será que estou alisando meu cabelo por querer mudar, ficar diferente?

Existe uma diferença em realizar um procedimento estético motivado por fatores externos que dizem a você o tempo todo que sua estética não é adequada socialmente e realizar os mesmos procedimentos motivado por um desejo seu em querer testar algo diferente ou mudar por um tempo. E essa é uma linha tênue.

Nessa situação, pagar a taxa seria submeter-se a esses procedimentos para agradar a outras pessoas, se adequar a alguma situação ou ao pedido de alguém, o que pode por sua vez desagradar a si mesmo, te deixar infeliz.

Por outro lado, passar por esses procedimentos estéticos por seguir um desejo que cresceu em você, para satisfazer a sua necessidade de mudança e de realização ou estar de bem com sua corporalidade, seu cabelo, nariz e boca ou cor de pele como são, pode significar sua felicidade e liberdade dessa conta.

Por isso, tomar consciência é importante! Só assim é possível perceber o que nos leva a tomar determinadas atitudes.

Nesse contexto, o trabalho do psicólogo tanto no âmbito clínico, como também no âmbito grupal (grupo de pessoas negras, com a mesma demanda), pode contribuir com essa conscientização das influências que regem a necessidade desse indivíduo em adequar-se a determinados padrões corporais.

Esse é um trabalho que pode ser acolhido e tratado por psicólogos negros ou não negros, que tenham conhecimento prático e teórico sobre o racismo e a influência do racismo na vida de pessoas negras.

No entanto, como destaquei no meu artigo O sofrimento psíquico dos negros e a importância do psicólogo negro enquanto reparadorexiste um fator de identificação entre o paciente negro para com psicólogos negros e de empatia (especificamente com relação ao racismo), do psicólogo negro para com o paciente negro, que pode facilitar a discussão ou acelerar o processo.

Ainda assim, a importância do conhecimento técnico deste psicólogo com relação as questões raciais não é descartada em nenhum dos casos.

Um pouco de contraponto

Como psicólogo e homem negro, meu trabalho tem sido dedicado ao empoderamento de negros na sociedade, capacitando-os a viver sua negritude de maneira completa, sem vergonhas, sem abaixar a cabeça. O presente texto é um exemplo disso, e é muito claro nele a mensagem de que os negros não se devem se render as “taxas” de maneira submissa.

Entretanto, não quero acabar este texto sem apontar questões que, acredito eu, todo negro deve refletir a respeito.

Vamos a eles:

Racismo não é algo que afeta exclusivamente os negros

Se você procurar a definição de racismo no dicionário, vai encontrar:

Conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre as raças, entre as etnias /doutrina ou sistema político fundado sobre o direito de uma raça (considerada pura e superior) de dominar outras.

Em outras palavras, se um asiático não gosta de judeus simplesmente por serem judeus, isso é racismo. Se um asiático não gosta de índios, por sua etnia, isso é racismo. Se um italiano não gosta de brasileiros, por sua etnia, isso é racismo. Se você, negro, não gosta de asiáticos e os classifica de forma estereotipada, isso também é racismo.

Pessoas negras por vezes podem reproduzir racismo até mesmo contra outros negros, pois nossa cultura e sociedade são estruturalmente racistas, e crescemos nesse contexto, onde a falta de consciência sobre esse racismo estrutural muitas vezes nos leva a reproduzir o mesmo racismo que nos oprime.

É importante dizer isso, para que possamos entender que, embora a causa negra tenha contornos bastante específicos, especialmente por causa da ferida da escravidão, outras etnias também sofrem com o racismo, mesmo que em menor proporção.

O racismo contra negros é um dos mais discutidos e abertamente combatidos no mundo

O fato de nós negros termos sido brutalmente escravizados e termos sofrido tanto, nos colocou em evidência. Tanta evidência, que hoje temos propagandas, matérias e até leis dedicadas a nos proteger. Isso não acontece, por exemplo, com nordestinos, sejam eles de qualquer cor. O preconceito com os nordestinos, na metade sul do Brasil, tem origens no racismo e é algo fortíssimo.

Com uma diferença: 

Se uma pessoa não negra te chamar de “negro sem vergonha” no supermercado, você pode imediatamente exigir que o prendam. Mas se alguém for chamado de “nordestino” sem vergonha, dificilmente poderá fazer algo. (O mesmo se daria com asiáticos, com judeus e outras etnias).

Por incrível que pareça, o racismo contra o negro, embora forte e estrutural, é um dos mais combatidos no mundo.

E por último:

Cuidado com o revanchismo

O mais difícil em toda esta questão do racismo, é orientar o negro que o sofre a ter uma postura sensata e equilibrada. Realmente não é fácil ser equilibrado quando você vive os impactos raciais na sua rotina e história. Ainda assim, no Brasil a questão é tratada com muita polarização.

De um lado, gente alegando que essa “afirmação negra” é uma bobagem, de outro, negros assumindo uma posição quase hostil em relação ao mundo por causa do preconceito que sofrem.

Saiba que nem tudo que acontece de ruim com você, é por causa de sua negritude. Se por um lado você jamais deve abaixar a cabeça e aceitar qualquer submissão por ser negro, por outro, não é inteligente você sair por aí com uma postura de hostilidade, acreditando que toda a sociedade é conscientemente racista ou atribuindo qualquer desgraça ao fato de você ser negro.

Nossa luta é por uma sociedade igualitária em que todos sejam respeitados.

Cuidado para não se tornar um portador do “ranço” étnico que você busca combater.

E para finalizar a nossa discussão, ressalto a importância de sempre refletir sobre as vivências do dia a dia, pois é através dessas reflexões que podemos notar onde essas taxas começam a ser cobradas e se estamos ou não pagando essas cobranças sociais indevidas que acabam saindo muito caras.

Não podemos esquecer que a tomada de consciência é um processo longo e por vezes doloroso que pode encontrar na psicoterapia um lugar seguro e propício para seu desenvolvimento.

Ainda assim, é sempre por meio da tomada de consciência que o empoderamento e tomada de si acontecem, busque sempre por sua tomada de consciência.

AUTOR

DIOGO SALVIANO

diogo.salviano.a@gmail.com

Diogo Salviano é psicólogo, apaixonado pela área clínica e pela forma como o processo psicoterápico é realizado na abordagem psicanalítica, atendendo em psicodiagnóstico e psicoterapia individual (crianças, adolescentes e adultos) com base em psicanálise. É também extremamente interessado em pautas e movimentos sociais, mais especificamente relacionadas as questões raciais, e sonha um dia em poder agregar conhecimentos psicanalíticos e de psicologia social em um livro que será escrito por ele.

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