Em uma medida significativa, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) recentemente emitiu uma nota de posicionamento que serve como um alerta aos profissionais da área e à sociedade em geral sobre os impactos da adoção do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Este é um tema que tem sido objeto de acirrado debate e atualmente se encontra em julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF). No entanto, além das implicações legais e políticas, há questões psicológicas, sociais e ambientais inerentes a essa problemática que merecem nossa atenção detalhada.
O CFP não está apenas ecoando um alerta, mas também fazendo uma análise aprofundada com base em anos de pesquisa e experiência no campo da psicologia. Seus argumentos apontam para consequências potencialmente devastadoras, tais como o desenraizamento cultural, a ruptura de laços comunitários e o apagamento da identidade coletiva dos povos originários. Não é exagero dizer que estamos diante de uma questão de direitos humanos que pode desencadear efeitos em cascata na saúde mental dessas comunidades.
A nota do CFP é corroborada pelo relatório do Ministro Edson Fachin, do STF, e ressalta a necessidade de seguir os princípios estabelecidos na Constituição Federal de 1988 para a demarcação das terras indígenas. Implantar critérios temporais de repercussão geral, segundo o Conselho, seria uma ruptura nos direitos conquistados pelos povos indígenas, não apenas em nosso país mas também em acordos e convenções internacionais.
Compreendendo o Marco Temporal: O Que é e Por Que Está em Julgamento no STF?
O marco temporal é um termo que ganhou notoriedade nos últimos anos, mas cujo debate se estende por mais de uma década no Brasil. Trata-se de uma tese jurídica que propõe uma mudança na forma como são demarcadas as terras indígenas no país. Segundo essa tese, a demarcação de terras indígenas deveria ser condicionada à ocupação dessas terras pelos povos indígenas em uma data específica: 5 de outubro de 1988. Essa data não foi escolhida ao acaso; ela corresponde à promulgação da Constituição Federal do Brasil.
Esse critério de demarcação é defendido como uma forma de harmonizar os interesses dos povos indígenas com os de outros grupos, principalmente ruralistas e agricultores. A ideia subjacente é que a Constituição de 1988 não deveria afetar situações já existentes antes de sua promulgação. Em termos práticos, isso significa que, se um grupo indígena não estivesse ocupando uma terra naquela data específica, ele teria que comprovar, por meio de processos judiciais, que havia uma disputa ou conflito em curso na época.
Mas, por que essa tese está atraindo tanta atenção agora? Em parte, isso se deve ao fato de que o Supremo Tribunal Federal (STF), a instância jurídica máxima do Brasil, está julgando a validade do marco temporal. Embora a última sessão tenha sido adiada em setembro de 2021 e ainda não há uma nova data prevista para o julgamento, o tema ganhou visibilidade e polarizou opiniões.
Os impactos dessa tese vão além da esfera judicial. De acordo com especialistas, mesmo que ainda não tenha sido oficialmente adotado, o marco temporal já está afetando a política de demarcação de terras indígenas desde o governo de Michel Temer, iniciado em 2016. Atualmente, estima-se que a demarcação de terras indígenas está praticamente estagnada no Brasil, com centenas de casos parados na Justiça.
Além disso, a discussão sobre o marco temporal mobilizou os próprios povos indígenas, que organizaram manifestações massivas, incluindo acampamentos em Brasília. Eles enxergam na adoção dessa tese uma forma de barrar avanços significativos em direitos territoriais que foram conquistados ao longo das últimas décadas.
Neste cenário, o Conselho Federal de Psicologia alerta para os possíveis impactos psicológicos, sociais e ambientais que podem surgir caso essa tese seja adotada. Mas antes de mergulharmos nessas implicações, é crucial que nós, como profissionais da psicologia, entendamos a fundo o que é o marco temporal e por que ele é um ponto de inflexão tão significativo na história das políticas indigenistas do Brasil.
Fundamentação do Conselho Federal de Psicologia
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) não é apenas um órgão regulador da profissão de psicólogo no Brasil. Com sua criação amparada pela Lei nº 5.766/71, o CFP também tem o dever de orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão, além de servir como órgão consultivo em matéria de psicologia. Este papel consultivo ganha especial relevância quando o tema em discussão tem potenciais impactos psicossociais e ambientais significativos, como é o caso do marco temporal para demarcação das terras indígenas.
O posicionamento do CFP sobre essa questão crucial é pautado pela ética e cientificidade que regem a profissão. O CFP se ampara, especificamente, na Psicologia Ambiental, uma subárea da psicologia que tem como foco as relações entre as pessoas e seus ambientes. Esta subárea, que surgiu a partir da crescente preocupação social com questões ambientais nos anos 1970, aborda a dinâmica humano-ambiental de forma holística e interdisciplinar.
Segundo Enric Pol, uma das referências citadas pelo CFP, o objetivo da Psicologia Ambiental é atuar sobre o comportamento de indivíduos e grupos em prol do meio ambiente. Ela busca melhorar as condições sociofísicas e fomentar um convívio mais harmônico com o meio ambiente, caminhando para a sustentabilidade como um novo valor social positivo.
Mas a psicologia que embasa o posicionamento do CFP é ainda mais especificamente contextualizada. No cenário latino-americano e brasileiro, esta subárea da psicologia assume contornos bastante particulares, especialmente ao lidar com grupos culturalmente diferenciados como os povos originários. Ela se baseia em uma crítica ao modelo hegemônico de desenvolvimento que afeta de forma mais acentuada esses grupos, frequentemente colocados à margem dos interesses da sociedade maior.
Neste contexto, o CFP aponta para a importância do protagonismo dos atores sociais, neste caso, os povos indígenas, como intérpretes de suas próprias situações e necessidades. É a partir dessa compreensão profunda das experiências históricas e das territorialidades indígenas que o CFP fundamenta seu alerta sobre os possíveis impactos psicológicos, sociais e ambientais do marco temporal.
Por fim, é preciso ressaltar o esforço do CFP em fornecer diretrizes para a atuação profissional neste contexto, como demonstrado na publicação recente das “Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os) junto aos povos indígenas”. Este documento é um exemplo concreto do compromisso do Conselho em prover aportes teórico-metodológicos que auxiliem os profissionais da psicologia a navegar nesse cenário complexo e multifacetado.
Análise do CFP Desmascara a Polêmica do Marco Temporal: Um Desafio Hermenêutico e Ético
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) elaborou uma análise detalhada sobre a polêmica questão do Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas. A abordagem feita pelo CFP evidencia múltiplos aspectos críticos, como problemas hermenêuticos, violações jurídicas e internacionais, e até mesmo consequências psicológicas para as populações indígenas.
Erros Hermenêuticos
Segundo o CFP, a ideia do Marco Temporal se baseia em uma interpretação errônea da Constituição Federal de 1988. O Conselho argumenta que a Constituição reconhece o direito dos povos indígenas às suas “terras de ocupação tradicional”, um termo que se refere à ocupação histórica e diversificada das terras de acordo com a própria territorialidade dos povos indígenas. O Ministro do STF Edson Fachin, aliás, fortalece essa interpretação ao afirmar que a proteção dos direitos originários é independente de um marco temporal.
Violações Jurídicas e Internacionais

Além disso, o CFP ressalta que a proposição do Marco Temporal não só viola a Constituição brasileira como também fere uma série de acordos internacionais assinados pelo Brasil. São citados a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Acordo de Paris e o Protocolo de Kyoto.
Impacto Histórico e Social
O CFP adverte que adotar um critério temporal para a demarcação das terras indígenas seria ignorar séculos de violência e marginalização sofridos por essas comunidades. Ao fazê-lo, acabaria por validar injustiças históricas, incluindo deslocamentos forçados e mortes, em detrimento dos direitos dos povos originários.
Consequências Psicológicas
A análise também aborda as implicações psicológicas para os indígenas, que incluem danos à sua saúde mental, identidade e pertencimento cultural. A implementação de um marco temporal poderia resultar em “agravos de natureza psíquica, social, espiritual e ambiental”, segundo o Conselho.
O Fator Ambiental
Para finalizar, o CFP destaca a relação entre a demarcação de terras indígenas e a preservação ambiental. O Conselho aponta que essas terras atuam como sumidouros de carbono e são vitais para a biodiversidade, portanto, sua proteção é imperativa não apenas para os indígenas, mas para toda a sociedade.
Em resumo, o CFP faz uma argumentação robusta contra a tese do Marco Temporal, colocando a questão não apenas como um debate legal, mas como um desafio ético e social que demanda uma reflexão profunda e responsável.
Conclusão do CFP Sobre o Marco Temporal: “Uma Ruptura de Direitos dos Povos Originários”
Em sua conclusão, o CFP enfatiza a necessidade de adotar uma abordagem que respeite os direitos ancestrais e a autodeterminação desses povos.
Um Lastro Multidisciplinar
O posicionamento do CFP é embasado em reflexões de profissionais da psicologia, indígenas e não indígenas, e está documentado em publicações como o livro “Psicologia e povos indígenas” (CRP-SP, 2010) e as “Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) junto aos Povos Indígenas” lançadas pelo Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP, 2022).
Desmistificando Equívocos
O documento do CREPOP destaca que a visão de que “há muita terra para pouco índio” é um equívoco comum, refletindo uma incompreensão da relação entre os indígenas e seus territórios. A relação é de ancestralidade e envolvimento, não simplesmente de propriedade. “O tamanho das terras indígenas não é mensurado dessa forma”, ressalta o documento, apontando para a complexa interligação entre ser humano, ambiente e cultura na cosmovisão indígena.
Defesa do Bem Viver
Segundo o CFP, defender a autodeterminação e a garantia dos territórios indígenas é, na verdade, defender o “Bem Viver” desses povos, incluindo suas culturas, línguas e lógicas de vida. “A eventual definição de um critério temporal de repercussão geral para demarcação de terras indígenas constitui ruptura de direitos dos povos originários”, alerta o Conselho.
Constituição como Guia
Por fim, o CFP enfatiza que qualquer processo de identificação e demarcação de terras indígenas deve ser conduzido em conformidade com a Constituição Federal de 1988. Este ponto está em concordância com a posição do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, que defende que a demarcação deve ser feita sem a imposição de critérios temporais.

Com esta conclusão, o Conselho Federal de Psicologia ressalta o seu compromisso contínuo em apoiar os direitos dos povos indígenas e insta à sociedade e ao poder público a adotarem uma postura ética e justa no trato dessa questão crucial.