Certamente as artes marciais marcaram minha vida pessoal e profissional desde a infância. Experimentei pelo menos quatro estilos de artes marciais vindas das terras orientais: karate, kung fu, judô e taekwondo.

Todas elas apresentam aspectos marcantes na formação de um praticante ou atleta, mas a principal característica associada a estas artes sem dúvidas é a disciplina. Não estamos falando de uma disciplina punitiva, como erroneamente as pessoas associam as artes marciais, mas sim a disciplina exercida por uma figura de autoridade significativa e, principalmente, a autodisciplina.

É necessário abordar a importância das artes marciais na formação de pessoas e como ela poderá estar situada nos contextos de esporte de combate. Precisamos compreender que a separação entre as duas questões são marcantes e que muitas vezes a essência da arte marcial é posta de lado devido a interesses pessoais ou comerciais.

Arte marcial, código de honra e autoconhecimento

As artes marciais orientais vêm ganhando adeptos no Brasil desde a sua chegada no início do século vinte. A explosão de artes marciais ocorreu a partir dos anos 50, com uma busca por conhecimento influenciado em grande parte pelos grandes astros do cinema, como Bruce Lee, Jean-Claude Van Damme, Steven Seagal, Jackie Chan, Chuck Norris, entre outros.

Ao longo dos anos estabeleceu-se uma relação das artes marciais com os fins esportivos. A partir daí criou-se a história de atletas brasileiros que disputavam os campeonatos internacionais já estabelecidos, entre eles eventos mundiais. Como exemplo de atletas brasileiros marcantes temos: Aurélio Miguel, Edinanci Silva, Danielle Zangrado, Luis Onmura,Maicon Siqueira, Natalia Flavignia, entre outros.

Todas estas pessoas e outros grandes exemplos desenvolveram aquilo que chamamos de personificação do mito de herói, ou seja, aquele que deve ser espelhado e admirado pelos seus feitos.

A base disto pode ter origem nos cinemas, televisão, internet ou o próprio desenvolvimento nas academias. Por conta disto, houve uma maciça expansão das artes marciais e muitas destas pessoas conquistaram títulos importantes nas olimpíadas e em campeonatos internacionais conhecidos como MMA (Mixed Martial Arts ou Artes Marciais Mistas).

A realidade das artes marciais transpassa a ocorrência do tempo em que ela era usada como arte para a guerra.

Ela se transformou durante o tempo e acompanhou as tentativas mundiais de transformar os instintos agressivos do homem em uma forma organizada de um ideal de performance, técnica apurada e conduta.

Portanto, estamos falando das artes marciais como esportes sem no entanto, retirar as bases filosóficas que norteiam o indivíduo que a pratica.

E estas bases filosóficas da arte marcial estão inscritas em três diretrizes tradicionais:

  • bu-jutsu: arte marcial
  • bushido: código de honra
  • budo: autoconhecimento

Certamente, a maior associação feita pelas pessoas ao ouvir falar das artes marciais não é a mesma da impressão antiga de formação do bu-jutsu (arte marcial) que servia para guerrear pelos líderes ou pela nação. O grande mérito das artes marciais foram de transpor esta barreira e focar nos pontos do bushido (código de honra) e budo (autoconhecimento).

Caso você tenha curiosidade, basta você perguntar para uma pessoa sobre qual é o conhecimento dela sobre as artes marciais, então provavelmente associará a ideia com o evitar confrontos e ter autocontrole.

Mesmo em tempos passados, as consequências da violência eram vistas com ressalva e, como lidavam com aspectos cruciais da existência humana, deviam ser evitadas a todo custo, segundo as tradições orientais. A morte era vista como honra e veneração aos antepassados e nunca como um desejo egoísta que levava ao confronto por razões pessoais, então as guerras travadas geralmente aconteciam por pessoas que quebravam esta lei natural.

Nos dias atuais, esta lógica de formação do indivíduo busca hábitos e atitudes de uma pessoa consciente, livre e crítica de sua realidade, que busca uma ideia de sociedade justa e harmoniosa, ou seja, sem violência.

E a psicologia do esporte?

A psicologia do esporte irá compreender as relações que envolvem as artes marciais, tentando nomear as diferenças entre esportes de combate e a formação das pessoas em si. O psicólogo do esporte estará situado na relação entre aluno e mestre, além das estratégias cognitivas e emocionais para melhorar a qualidade do rendimento esportivo.

Para evitar a estagnação, devemos concentrar nossos esforços na busca por um conhecimento ampliado destas incríveis artes que separam o homem do lutador. Buscar conhecimentos científicos e filosóficos de outras áreas nos possibilitam ter uma visão ampliada daquilo que trará benefícios tanto na formação, quanto no rendimento destas pessoas.

Nossas intervenções diante deste cenário são sempre no sentido de resgatar a importância da formação destas pessoas.

Essa afirmativa vale até mesmo ao tratar de esportes de alto rendimento, visto que futuramente as exigências dos treinamentos podem acarretar em sérias dificuldades psicológicas como excessos de treino, intensa dependência de outras pessoas e outras psicopatologias associadas ao esporte, se não forem devidamente acompanhadas.

A ideia central é focar na relação estabelecida entre o mestre e seus discípulos, já que a arte marcial em si evoca um forte conteúdo educacional e formador, ambos centrados na figura de uma liderança.

Estas pessoas são as responsáveis diretas da aplicação de atividades que estimulem o desenvolvimento biológico, social, psicológico e o potencial espiritual do homem, que deve estar em congruência com as necessidades de paz e harmonia da sociedade que os circundam.

A expectativa de um discípulo é de que esta figura de autoridade conheça técnicas, filosofias, habilidades físicas, controle emocional e tenha um forte componente ético em suas atitudes.

A premissa é de que o aluno busca a aceitação do instrutor e espera um dia tornar-se graduado o suficiente para que possa passar estes conhecimentos para outras pessoas. Evidentemente que nem todos aqueles que praticam as artes marciais anseiam por estes motivos no início de suas atividades, mas a essência da arte em si tem este chamado para a graduação e para a superação de etapas que culminam em um reconhecimento.

Um participante de artes marciais deve estar ciente que esta busca constante por superação e graduação através de seus conhecimentos adquiridos sofrerão resistências com certo grau de complexidade, como treinos árduos e que emanam a fadiga acumulada, condições climáticas adversas e volume grande de conhecimentos a serem adquiridos.

Percebe como devemos cuidar das relações que se estabelecem nestes ambientes?

Existe um limite a ser considerado nesta relação. Não podemos ignorar o fato que esta admiração ou relação de confiança poderia ser abalada num mínimo sinal de tentativa de dominação através de repressões ou intimidações egoístas que levam ao contrário do que estamos propondo.

Esta inversão dos valores das artes marciais pode acontecer entre professores que orientam os seus alunos ou discípulos para a fragilidade e indecisão, ao contrário daqueles que utilizam a arte para orientá-los para o sucesso pessoal e independência através dos conhecimentos adquiridos.

Não é raro encontrarmos exemplos de pessoas que ocupam lugares de mestres e que estão equivocadas em suas condutas. Elas realizam ações exageradas em virtude de sua posição e dão preferência a discípulos que são submissos a sua conduta antiética.

Tais ações são encontradas em mestres que agridem alunos durante treinamentos, reagem de forma violenta diante de resultados esportivos “insatisfatórios”, dão prejuízo na reputação profissional de atletas devido a repulsa que causa em federações e afins, preferências por alunos que sejam seus escolhidos para disputar campeonatos e por fim treinamentos físicos extenuantes a fim de ridicularizar praticantes.

Eles utilizam a justificativa de seguir modelos orientais tradicionais em suas condutas, mas se considerarmos que na atualidade estas ações prejudicam o desenvolvimento do adulto, imagina para crianças e adolescentes que estão em pleno crescimento? Quais prejuízos esta vivência acarretará?

Dito isto, devemos estar atentos à formação e ao modo com que estes ditos mestres conduzem suas orientações tanto em esportes de alto rendimento quanto na formação de novos participantes das artes marciais. Infelizmente, não é raro encontrar pessoas sem gabarito algum para conduzir atletas e pessoas nestes espaços e, geralmente, estão ocupando estes espaços por questões políticas e/ou financeiras em instituições.

Devido a estes movimentos dentro das artes marciais foram criadas exigências para a especialização científica mesmo para aqueles que já praticam a arte marcial há muito tempo.

Então, frequentemente já encontrarmos mestres que são graduados em Educação Física, o que facilita nossa inserção nestes ambientes uma vez que a linguagem científica nos aproxima da compreensão do trabalho desenvolvido. Este mestre estará atualizado sobre os conceitos atuais de qualidade de vida tanto na formação quanto em esportes competitivos.

Quais aspectos mentais podemos trabalhar com os atletas?

As artes marciais são claras em quais segmentos das habilidades mentais podemos desenvolver para que este atleta possa apresentar um rendimento esportivo buscando a excelência. Temos que ter a ideia de que mesmo com o incremento de treinamentos de habilidades mentais, estes atletas terão uma difícil caminhada rumo à conquista de objetivos.

Os treinamentos de habilidades mentais são tão importantes quanto os treinamentos de habilidades física.

Contudo, são constantemente ignorados por técnicos e atletas por não terem a ideia exata do que poderá ser desenvolvido e qual será a contribuição da psicologia. E nós, psicólogos, estamos conseguindo comunicar essas questões com clareza?

Veja abaixo como o hábito de treinamentos mentais pode ser incorporado aos treinamentos esportivos, auxiliar as diversas áreas do conhecimento e trazer outros benefícios.

Os treinamentos de habilidades mentais procuram:

  • Diminuir a tensão antes das competições e consequentemente aliviar crises de ansiedade decorrentes deste aspecto;
  • Auxiliar na manutenção da atenção e concentração dos exercícios e atividades em competição;
  • Estabelecer a autoconfiança nos atletas que não possuem a certeza de desenvolver o melhor desempenho possível tanto em aspectos físicos quanto mentais;
  • Estabelecer metas esportivas de curta, média e longa duração, que sejam realistas ao desenvolvimento da carreira do atleta;
  • Usar a mentalização para antecipar estímulos estressores e melhora da execução dos movimentos.

Existem diversas outras maneiras de trabalharmos os aspectos mentais diante de um cenário como o das artes marciais. Devemos ter a compreensão do trabalho de forma ampliada e buscando sempre a melhora da qualidade de vida destas equipes e indivíduos.

Um exemplo é trabalhar com a equipe realizando dinâmicas de grupo que facilitem as relações interpessoais, aumentem a coesão de grupo e o desenvolvimento de níveis mais aceitáveis de comunicação.

As demandas que surgem nas artes marciais visam algumas habilidades psicológicas básicas que precisam ser trabalhadas. São estes conjuntos:

  • Autocontrole: necessário para planejar e manter os pensamentos apropriados, emoções e ações durante o combate, proporcionando a autoregulação.
  • Automotivação: refere-se a disposição constante para o treinamento e o esforço, mesmo em detrimento a demandas externas e de outros.
  • Autoconsciência: possibilita ao lutador monitorar e reconhecer seu status mental, além de ajustar pensamentos e emoções de maneira a otimizar os níveis de ansiedade e arousal nas mais diversas situações.
  • Resistência mental: é apresentada no contexto do esporte como item fundamental do plano de ação do atleta em sua competição. A resistência pode ser treinada e desenvolvida
  • Confiança: é a atitude positiva e a crença de que suas ações serão efetivas em determinada situação.
  • Competitividade: é o esforço para a satisfação do atleta em comparação com outros competidores
  • Motivação intrínseca: é a capacidade de focar-se em determinado objetivo, de maneira constante e intensa, tendo como fonte seus valores internos, pensamentos e desejos.

Vale lembrar que ao trabalharmos com estas questões, não devemos apenas focar nos aspectos ligados ao rendimento esportivo e os resultados, mas sim, em contribuir para a melhora da qualidade de vida destas pessoas diminuindo o estresse do dia a dia, ajudando-o a controlar estados emocionais conflituosos, também nos aspectos fisiológicos como os reflexos, relações interpessoais de qualidade e por fim, a manutenção da prática de atividades físicas constantes, que são dificultadas devido ao alto índice de exigências sociais da vida moderna.

Contextualizando a atuação

Como psicólogo do esporte devemos saber que adentraremos em espaços em que o rendimento muitas vezes é colocado em primeiro plano devido a fatores comerciais.

A introdução de ações que proporcionem consciência a estas pessoas sobre suas atitudes devem seguir um curso de forma paulatina e de acordo com os princípios éticos da atuação. Isto inclui agir de forma a privilegiar o bem-estar físico e mental destes atletas.

A explicação para esta prioridade nos fins comerciais é explicado (principalmente no Brasil) por uma possibilidade de ascensão social e econômica que são reais a todas as camadas da população. Como mencionado, temos um crescimento na popularidade dos esportes de combate associados as artes marciais, então é natural que haja um interesse destas pessoas que veem nas lutas a possibilidade de ascensão.

Temos diversos casos de sucesso nos esportes estão comprovando esta premissa. Mas será que todos possuem estas oportunidades?

Sem uma ideia exata de seus planos de carreira é bem possível que estas pessoas parem em algum lugar da caminhada em que, quase invariavelmente, são acometidos por questões psicológicas.

Todo o desenvolvimento da carreira deste atleta será marcado por vantagens e desvantagens.

A carreira de lutador exigirá um aumento da capacidade de trabalho que não dependerá de outras áreas do conhecimento. Esta carga de trabalho é conhecida como recursos ergogênicos e que abrangem as áreas do alto rendimento como: psicologia esportiva, agentes nutricionais, agentes farmacológicos e cosméticos, hormônios e agentes fisiológicos.

Devido ao alto grau de exigência nas competições e as constantes regras, os esportes de combate mostram diversas categorias e combates mais equilibrados e, por esta razão, estes esportistas podem ultrapassar as barreiras da adaptação para sanar estas exigências, como por exemplo, a perda abrupta de peso ou excesso de treinamento.

Todas estas mudanças comportamentais trarão riscos a saúde física e mental deste atleta de alto rendimento.

Um destes riscos que acometem quaisquer ser-humano pode se transfigurar em psicopatologias associadas a este esporte como:

  • Transtornos alimentares – acometem tanto homens quanto mulheres que são cobrados pela excelência e movimentos minuciosos a custas de um corpo escultural);
  • Transtorno de déficit de atenção com hiperatividade – fator genético que pode se intensificar por conta da desorganização diante de resultados esportivos decepcionantes;
  • Transtorno bipolar – constantes alterações de humor devido a fatores como eventos esportivos traumatizantes, experimentação de estresse intenso ou abuso de drogas;
  • Transtorno dismórfico corporal – associado a uma dificuldade de adaptação social ou autocobrança;
  • Transtorno de personalidade borderline – intensa sensação de abandono ou de troca por parte de figuras importantes no meio esportivo, relações afetivas intensas e dependentes, relações familiares complicadas, atos de impulsividade e dificuldade no autocontrole;
  • Transtorno de conversão – repetição constante de lesões sem causa aparente e sintomas físicos durante treinamentos e competições de causa somática;
  • Transtorno depressivo maior – diante de situações como aposentadoria, perda constante de competições, lesões, sentimentos de tristeza profundos diante de resultados inexpressivos;
  • Transtorno de personalidade narcisista – exposição a vitórias, exposição midiática, aumento abrupto de status social e econômico
  • Transtorno obsessivo-compulsivo – intenso uso de rituais que dificultam o foco e concentração durante treinos e competições;
  • Transtorno do pânico – dificuldade de enfrentamento de adversários ou situações específicas competitivas; intensidade diferente dos treinamentos nas competições;
  • Entre outros.

Devemos realizar nosso trabalho visando as regras que esta competição exige e tomando as precauções necessárias para que este atleta vise alcançar estas metas de forma realista e associado a sua rotina, nunca nos esquecendo que aliar o momento de preparação mental ao treinamento, pode inclusive ser um fator de motivação para que este atleta conquiste objetivos reais ao longo do tempo.

Lidar com a perda de peso sem que para isto o atleta utilize técnicas não recomendadas e que lhe traga prejuízos de curto e longo prazo é um exemplo do que pode ser prevenido.

Além disso, é importante contar com os olhares da equipe muldisciplinar para a questão, visando estabelecer diretrizes que sejam adaptáveis durante os períodos de treinos e competições.

Vamos considerar a recuperação de um atleta lesionado que está com níveis de depressão associados a perda de status: a psicologia esportiva poderá atuar visando reconhecer estes sentimentos e estabelecer metas que visem o processo de recuperação, mas sem o conhecimento fisiológico de tal recuperação é impossível determinar quais pontos reais este atleta irá seguir para que sua recuperação seja plena.

Por fim, a ideia de um atleta de alto rendimento que utiliza as artes marciais em esportes de combate deve estar atrelada a sua capacidade de sentir-se no controle de seus estados físicos e mentais, para que diante de situações que exijam encarar desafios difíceis, ele possa manter a resistência mental em cada etapa das competições e sentir menos as interferências externas.

Desta forma ele estará sempre alinhado aos princípios das artes marciais que visam o caminho e não apenas o resultado.

Cozac, João Ricardo Lebert – Psicologia do esporte: atleta e ser humano em ação/ João Ricardo Lebert Cozac – 1. Ed. São Paulo: Roca, 2013- páginas 161-167

Psicólogo e Coach de Alta Performance da Seleção Brasileira de Parataewokondo (SBPTKD). Palestrante e idealizador de cursos e workshops pela Academia do Psicólogo. Psicólogo do Instituto Olga Kos de Inclusão Cultural através do Esporte (Karatê-Do e Taewokondo). Membro do Núcleo de Pesquisa do Instituto Olga Kos. Psicólogo e Coach da Differenza Serviços em Psicologia. Comentarista do Programa Rock Esporte pela Rádio Conectados Web Especializando em Docência das Ciências do Esporte pela Universidade Cândido Mendes. https://linktr.ee/psieduardosouza

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