Imagine a situação: um psicólogo se depara com uma nova técnica terapêutica ou uma ferramenta inovadora. No início, ele examina minuciosamente cada aspecto, pondera sobre sua aplicabilidade e talvez até hesite ao implementá-la. Porém, após algumas sessões, essa técnica começa a fluir naturalmente, tornando-se quase uma extensão de sua prática. Esse processo de transição do novo ao familiar é uma manifestação do cérebro em ação, adaptando-se e formando hábitos. Mas, o que realmente acontece no nível neuronal quando o desconhecido se transforma em rotina?

A capacidade do cérebro humano de adaptar-se, aprender e estabelecer padrões é nada menos que fascinante. Em situações como a descrita acima, transitamos do uso intenso do nosso sistema cognitivo deliberado para um sistema mais automatizado. Esta transição, que todos nós experimentamos inúmeras vezes ao longo da vida, seja ao aprender uma nova habilidade ou adaptar-se a uma mudança, é profundamente enraizada na neurociência dos hábitos.

Este artigo propõe um mergulho técnico, mas acessível, na intrincada rede neuronal que sustenta a formação e manutenção dos hábitos, direcionado a psicólogos que buscam compreender os mecanismos cerebrais por trás dos comportamentos repetitivos. Se os hábitos são, de fato, os pilares de nossas ações diárias, entender seu funcionamento no cérebro é crucial para qualquer profissional que busca facilitar mudanças comportamentais em seus pacientes.

Do Comportamento Orientado a Objetivos ao Loop do Hábito: Uma Perspectiva Neuronal

Quando nos deparamos com uma nova tarefa ou situação, nossas ações são frequentemente guiadas por um propósito claro e definido. Essas ações são descritas na literatura como comportamento orientado a objetivos. Por exemplo, ao interagir com uma nova máquina de café, um indivíduo poderia dedicar tempo para entender cada passo do processo, garantindo que o café resultante seja feito corretamente. Esta ação cuidadosa e ponderada é motivada por um objetivo específico: produzir um café saboroso.

À medida que repetimos essa ação, os processos neuronais subjacentes começam a mudar. De acordo com Joye (2018), quando uma ação é reforçada ou recompensada, estabelece-se uma associação ação-resultado. Portanto, ao obter um café bem feito após seguir determinados passos, uma associação entre esses passos (ação) e o café (resultado) é formada no cérebro.

Esta associação é a base para a transição do comportamento orientado a objetivos para o comportamento habitual. Inicialmente, ao aprender a operar um novo dispositivo, como um forno micro-ondas ou uma máquina de café, as ações são dirigidas por objetivos específicos. O cérebro usa o sistema de recompensa para reforçar essas associações ação-resultado, particularmente através do núcleo accumbens, uma região crucial para o processamento de recompensas.

No entanto, com repetição e reforço contínuo, essa associação ação-resultado começa a ser codificada em circuitos neuronais de maneira mais eficiente. Eventualmente, a ação não requer mais uma consideração deliberada ou consciente e se torna automática, entrando no que é conhecido como o “loop do hábito”. Este loop envolve um gatilho (uma situação ou estímulo específico), a rotina (a ação em si) e a recompensa (o resultado da ação).

A transformação de um comportamento orientado a objetivos em um hábito tem implicações significativas na prática clínica. Para psicólogos, entender essa transição e os mecanismos neuronais subjacentes pode ajudar ao abordar comportamentos habituais mal-adaptativos e ao desenvolver estratégias para modificar ou substituir hábitos indesejados.

O comportamento orientado a objetivos é o ponto de partida para a formação de hábitos. Com reforço e repetição, as associações ação-resultado se solidificam no cérebro, levando à automação dessas ações dentro do loop do hábito. A compreensão deste processo fornece insights valiosos sobre a natureza dos hábitos e oferece ferramentas para intervenção clínica.

Da Associação Estímulo-Resposta à Sensibilidade de Resultados: Insights Neurais sobre Hábitos Automáticos

Nosso cérebro tem a incrível capacidade de otimizar seus recursos através da automatização de comportamentos repetidos. Esta capacidade se manifesta através da formação de associações estímulo-resposta insensíveis a resultados, como detalhado por Joye (2018). Para ilustrar, consideremos o trajeto diário para o trabalho. Inicialmente, um novo trajeto exige atenção aos detalhes, como placas de sinalização e referências visuais. No entanto, após repetidas viagens, essa rota se torna familiar e, eventualmente, a condução torna-se quase automática.

Essa automação é evidenciada quando, mesmo após um dia difícil no trabalho, o ato de dirigir no dia seguinte não é questionado. O estímulo – saber que é um dia de trabalho e que é hora de partir – desencadeia automaticamente a resposta de entrar no carro e dirigir até o local de trabalho. Esta é a essência da associação estímulo-resposta insensível a resultados: o comportamento é desencadeado pelo estímulo, independentemente da expectativa ou recepção de uma recompensa.

Esta automação de comportamentos serve a um propósito vital: libera espaço de processamento cerebral. Quando um comportamento torna-se automático, menos recursos cognitivos são necessários para sua execução, permitindo ao cérebro focar em tarefas mais complexas ou novas informações.

O conceito de estímulo, resposta e recompensa não é novo na psicologia. Por décadas, entendemos essa sequência como central para a aprendizagem e formação de hábitos. No entanto, até recentemente, nossos insights sobre esse processo eram limitados às observações comportamentais.

Com o advento da ressonância magnética funcional (fMRI) e outras tecnologias avançadas de neuroimagem, agora temos a capacidade de observar diretamente a atividade cerebral durante a formação e execução de hábitos. Estudos recentes mostraram que regiões como o estriado dorsal e o córtex pré-frontal são vitais para a automatização de comportamentos. Especificamente, o estriado dorsal está envolvido na formação de associações estímulo-resposta, enquanto o córtex pré-frontal desempenha um papel no monitoramento e na tomada de decisão.

Resumindo: A formação de associações estímulo-resposta insensíveis a resultados é uma característica adaptativa do cérebro humano, permitindo a economia de recursos cognitivos e a eficiência na execução de tarefas repetitivas. Através da neuroimagem, estamos começando a entender as complexidades neurais subjacentes a esses processos e a traduzir nosso conhecimento comportamental em compreensões neurocientíficas profundas. Para os psicólogos, esses insights fornecem uma base mais robusta para intervenções comportamentais e terapêuticas.

Loop de Hábitos: Um Tríptico de Duhigg ou o Tetraedro de Clear?

Ao explorar o reino dos hábitos e sua formação, duas abordagens se destacam, ambas embasadas em pesquisas profundas, porém com nuances distintas na conceptualização do ciclo do hábito.

O Loop Tríptico de Duhigg:

Charles Duhigg, no seu livro “The Power of Habit” (2012), postula o “loop de hábito” composto por três fases distintas:

  1. Estímulo (Cue): Serve como gatilho para que o cérebro entre em modo automático e determine qual hábito será ativado.
  2. Rotina (Routine): Refere-se ao comportamento em si, seja ele físico, mental ou emocional.
  3. Recompensa (Reward): Um estímulo que o cérebro identifica como benéfico e digno de ser lembrado para futuras ocasiões.

A interação contínua destas fases forma um loop que, com o tempo, se solidifica e se automatiza. O fenômeno da antecipação, onde a simples expectativa da recompensa ativa uma resposta similar no cérebro à da própria recompensa, é um indicativo da consolidação deste loop de hábito.

O Tetraedro de Clear:

Em contraste, James Clear, em suas reflexões (2018), propõe um modelo de quatro estágios para o ciclo de hábito:

  1. Estímulo (Cue): Semelhante ao de Duhigg, é a informação inicial que sinaliza uma possível recompensa.
  2. Desejo (Craving): É a motivação intrínseca que surge após o estímulo. Sem um desejo ou motivação, não há impulso para agir.
  3. Resposta (Response): É o comportamento ou ação que se segue ao desejo.
  4. Recompensa (Reward): O objetivo final. Não só satisfaz o desejo inicial, mas também serve como feedback para o cérebro, ajudando-o a discernir ações benéficas das não benéficas.

Para Clear, o loop de hábito é composto por duas fases: a fase do problema (estímulo e desejo) e a fase da solução (resposta e recompensa). Somente quando essas quatro etapas são cumpridas de forma eficaz, um hábito pode ser formado e solidificado.

Ambos os modelos, embora diferindo em sua estrutura, sublinham a importância da recompensa no processo de formação de hábitos. Enquanto Duhigg enfatiza a automação do loop, Clear destaca a dualidade entre identificar um problema e buscar sua solução. Para profissionais da psicologia, entender esses ciclos e suas nuances permite a promoção de comportamentos desejados e a modificação de hábitos indesejados. A escolha entre os modelos dependerá da situação específica e da abordagem preferida pelo profissional.

Neurociência dos Hábitos: O Jogo Entre Córtex Pré-Frontal, Gânglios Basais e ‘Chunking’

O cérebro humano, em sua complexidade, é um maestro na orquestração de aprendizado e automação de comportamentos. A forma como aprendemos e automatizamos tarefas cotidianas tem raízes profundas nos mecanismos cerebrais, especificamente no córtex pré-frontal e nos gânglios basais. Vamos mergulhar nestes processos.

1. Córtex Pré-Frontal – O Planejador Ativo: No estágio inicial de aprendizado de uma tarefa, como aprender a usar um novo computador, o Córtex desempenha um papel crucial. Esta região cerebral é responsável por funções cognitivas superiores e tomada de decisão. Quando confrontados com novos desafios, é ele quem busca ativamente soluções, como encontrar rotas específicas em um dispositivo novo (Joye, 2018).

2. Gânglios Basais – O Centro da Automação: Conforme nos tornamos proficientes em uma tarefa, o cérebro busca eficiência. Os gânglios basais, localizados no sistema límbico, começam a assumir o controle. Estes gânglios são essenciais na formação de hábitos, desenvolvimento emocional, memória e reconhecimento de padrões. À medida que uma tarefa se torna rotineira, o Córtex Pré-Frontal reduz sua atividade, permitindo que os gânglios basais gerenciem a ação, economizando energia cerebral e promovendo a automação (Joye, 2018; Oppong, 2018).

3. ‘Chunking’ – Agrupamento Eficiente de Tarefas: Antes de uma tarefa ser completamente automatizada, uma região nos gânglios basais, conhecida como estriado dorsolateral (EDL), entra em ação. O EDL agrupa (“chunking”) sequências de ações relacionadas, percebendo-as como um único evento. Por exemplo, ao preparar um café, o EDL reconhece as etapas individuais e as agrupa como uma única tarefa, liberando espaço mental para outras atividades.

Além disso, os neurônios relacionados a essa tarefa específica são ativados no início e/ou no fim da sequência, enquanto os neurônios não relacionados permanecem inativos. Esse agrupamento neurônico fortalece com a repetição e consistência, tornando a sequência de tarefas cada vez mais robusta e eficiente (Joye, 2018; NPR/Duhigg, 2012; Farnam Street, 2019).

A capacidade do cérebro de aprender, adaptar-se e otimizar tarefas está enraizada em sua estrutura e funcionamento. Compreender o interjogo entre PFC, gânglios basais e ‘chunking’ fornece insights valiosos para os psicólogos, especialmente quando se busca entender a formação de hábitos e comportamentos automatizados. Este conhecimento pode ser fundamental para desenvolver intervenções eficazes no campo da reabilitação, aprendizado e mudança de comportamento.

Intersecção de Sistemas Cerebrais: A Dualidade entre o Córtex Pré-Frontal e os Gânglios Basais

As atividades cotidianas, tão triviais quanto preparar um café, nos fazem testemunhas de uma engrenagem cerebral notavelmente intrincada. Durante esse processo, são mobilizados, pelo menos, dois sistemas cerebrais distintos. Mas como exatamente o cérebro decide qual sistema utilizar e como eles interagem para criar hábitos tão imperceptíveis em nossa rotina? Vamos explorar as evidências mais recentes e as teorias que moldam nosso entendimento atual.

1. A Antiga Teoria: Concorrência entre Sistemas – Anteriormente, postulava-se que a circuitaria cerebral subjacente a ações direcionadas a objetivos e ações habituais competia entre si por dominância. Em resumo, todo comportamento começaria como uma ação orientada a um objetivo, e com a repetição, o sistema habitual assumiria o controle. Isso inibiria as conexões direcionadas ao objetivo, liberando processamento cerebral para outras tarefas.

2. A Perspectiva Atual: Colaboração entre Sistemas – Contrapondo à teoria anterior, estudos recentes indicam que esses sistemas não competem, mas colaboram. A circuitaria de ação direcionada a objetivos pode ser necessária para iniciar uma rotina, enquanto a automação habitual é usada para concluir uma sequência que o cérebro percebeu como uma única unidade, ou seja, uma rotina “chunked” (Joye, 2018).

3. Implicações e Observações do Mundo Real – Esta coexistência complementar entre sistemas poderia elucidar certos erros aparentemente distraídos que cometemos. O exemplo de Dr. Asha Bauer, psicóloga e coach de produtividade, é ilustrativo. Uma vez, ela decidiu não ir à academia após o trabalho devido a não se sentir bem. Sua intenção era voltar diretamente para casa. No entanto, descobriu-se estacionada no estacionamento da academia, a despeito de sua decisão consciente. Parece que o sistema automático (gânglios basais e EDL) assumiu o controle, direcionando-a à academia, uma rotina estabelecida. Em termos de neurociência, a ação orientada por objetivos de Dr. Bauer (ir para casa) foi suplantada por uma rotina habitual (ir à academia) (Bauer, n.d.; Joye, 2018).

Ou seja, o cérebro, com sua intrincada rede de sistemas, não se baseia em um único modo de operação. Em vez disso, há uma orquestração contínua entre o Córtex Pré-Frontal e os Gânglios Basais, permitindo uma transição suave entre ações orientadas a objetivos e comportamentos habituais. O reconhecimento dessa dinâmica oferece insights valiosos para a psicologia, fornecendo uma compreensão mais profunda de como os hábitos são formados e, ocasionalmente, conflitam com nossas intenções conscientes.

Referência: Counselling Connection (as fontes citadas no texto estão detalhadas no link)

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