Esse artigo traz um dos conceitos base da Psicologia Biodinâmica de desenvolvimento humano: a Personalidade Primária é o máximo potencial humano e que toda pessoa tem, em maior ou menor grau, presentes em sua vida cotidiana.
Resgatar o contato com essa essência e ajudar todo seu potencial estar presente na vida do paciente é o grande desafio do nosso trabalho.
Não, não é um conto de fadas
Pense em uma pessoa livre de verdade, segura de si, capaz de expressar verdadeiramente o que pensa ou sente, capaz de rir e gargalhar de doer a barriga, capaz também de chorar profundamente.
Uma pessoa presente onde está, capaz de se perceber e se respeitar, de se conectar profundamente com o outro, que olha nos olhos com facilidade, faz contato com calor humano, daquelas espontâneas, que são naturalmente elas. Sem medo das críticas, do ridículo, das comparações. Isso nem passa por sua cabeça. Uma pessoa curiosa, louca para desbravar a vida, viver as aventuras que ela traz, corajosa. Sabe lidar com o imprevisto, com o desconhecido.
Pessoa dessas que vive “de corpo e alma”, como dizemos. Que está inteira onde estiver.
Não precisa se defender do que ainda não veio, mas é capaz de se proteger quando necessário. Sabe o que quer, diz sim ou não com a mesma facilidade. Tem força, determinação e maturidade para conquistar seus sonhos, ao mesmo tempo em que sabe ter flexibilidade e suavidade.
É cheia de energia e tem a criatividade saindo pelos poros. Tem uma intimidade e contato constante com a sua criança interior. Seus pés estão em pleno contato com o chão, em contato com a realidade interna e externa. Naturalmente alegre, sente prazer no trabalho, nas relações, no lazer. Tem uma relação saudável, livre e prazerosa com a sua sexualidade.
Tem uma conexão com o ambiente ao seu redor, numa gratificante sensação de pertencimento. É ética e tem prazer na própria companhia. É capaz de se relacionar com contato profundo – onde dar e receber são naturais desse contato. Tem fé e amor imenso pela vida, sem temer a morte. Tem brilho nos olhos e movimentos graciosos. Sua beleza vem da expressão de quem é.
Essa é a descrição, com minhas palavras, da Personalidade Primária, nos apresentada pela Biodinâmica como o máximo potencial humano.
E não é?

Pensar numa pessoa assim é realmente o máximo.
E, foi esse conceito da Psicologia Biodinâmica, uma das coisas que mais me encantou nessa abordagem. Gerda Boyesen traz uma visão positiva do Ser Humano, que acredita numa essência bela, tão fluída, tão leve, tão amorosa, tão cheia de potencial.
Sua visão veio de encontro ao que faz sentido pra mim, que é a questão de ter fé na vida, no fluxo de vida que vai dentro de cada um. A Personalidade Primária pulsa, vibra, não é parada nem estagnada em algum canto, ela é saudável e em movimento.
A Psicologia Biodinâmica -para quem ainda não viu nada sobre ela – tem uma visão integrada da pessoa, onde corpo e mente fazem parte da mesma unidade funcional.
É no corpo que as experiências são vividas e é com ele que a pessoa se expressa no mundo. Assim, os “traumas” que geram defesas psíquicas/emocionais, geram também defesas físicas. Essas são chamadas de “couraças”.
A Personalidade Primária é aquela que não desenvolveu as “couraças” e assim, cada célula é suprida de energia que pode fluir livremente.
É livre de tensões e medos reprimidos em seu corpo. Tem todo o seu potencial disponível. É alguém que não aprisionou a sua energia vital, podendo entrar em contato com aquelas sensações de vibração e excitação interna que nos contam que estamos vivos- algo que geralmente sentimos quando crianças.

Agora, eu vou te contar uma coisa boa: isso não é conto de fadas, não. A personalidade primária mora em mim, mora em você. Sim, ela existe em cada um de nós, e está presente no nosso dia a dia em menor ou maior grau.
E o nosso grande desafio para “viver” plenamente é retomar a conexão com ela. E assim, a cada aspecto que vamos descobrindo dela presente em nós, vamos nos fortalecendo e abrindo espaço para que mais um pedacinho dela possa vir à tona.
Mas, se ela é tão maravilhosa assim, onde foi que eu a deixei escapar???
Precisamos nos proteger
Se ela não está em contato com sua personalidade primária é porque precisou se proteger.
Ela vai se escondendo na ânsia de se encaixar nos padrões pré-estabelecidos, para buscar se sentir amada, aceita. Se esconde quando ela é atacada, quando ela sofre ameaças e agressões constantes, então ela vai se protegendo, e à medida em que ela vai se protegendo ela vai se encolhendo.
Não é assim que a gente faz quando quer se proteger?
A gente se encolhe, que é pra aquilo que está machucando não pegar, a gente se esconde num canto, principalmente se a gente acha que o que nos ataca é tão maior do que nós.
Geralmente, a Personalidade Primária começa a se esconder lá nos primórdios da vida, quando a criança ainda está totalmente à mercê do adulto, da mãe, do ambiente em que ela vive. Gerda diz que isso é “particularmente aflitivo” nos primeiros anos de vida, que afeta todo o desenvolvimento da criança – físico, mental e emocional.
Isso vai enterrando a Personalidade Primária, o núcleo vivo, sob as camadas de uma Personalidade Secundária, adquirida para defender-se das constantes agressões de seu meio. Essa Personalidade Secundária não está em contato com sua energia vital — apesar de a energia ali estar, não flui livremente pelos tecidos, pois fica estagnada e aprisionada pelas tensões do corpo: as manifestações orgânicas da neurose.
O nosso papel como terapeutas
E para que essa Personalidade Primária comece a se desencolher, a se alongar, a se espreguiçar, se colocar, colocar a sua carinha no mundo de novo, o terapeuta oferece um lugar seguro e acolhedor para que essa personalidade se desenvolva, se mostre, seja resgatada.
Quando falo em lugar seguro e acolhedor, não falo em zona de conforto, não tem nada a ver com isso. Até porque, a Gerda nos traz que, quando a criança é cuidada tendo as suas necessidades respeitadas e supridas, naturalmente, a partir do momento em que ela não precisar mais daquela dependência, ela vai ter despertado nela o desejo de ir pro mundo, de se tornar independente.
E assim é com os pacientes que nós recebemos.
Não acreditamos na Biodinâmica que a gente precisa ficar enfiando o dedo na ferida, fazer o cara virar um caquinho jogado lá no chão para ele encontrar toda a sua força. Não, realmente não acreditamos nisso.
Nós acreditamos que ele precisa, sim, estar seguro para que possa deixar emergir o que tem de mais precioso, que é a sua Personalidade Primária – sabendo que ela vai ser acolhida, vai ser cuidada e naturalmente, nessas condições todo seu potencial vai poder vir à tona, vai ter vontade de ir pro mundo, vai ter vontade de se comunicar com o outro.
Então esse é o nosso papel enquanto terapeutas: dar esse lugar seguro, esse lugar acolhedor, esse lugar de sustentação para que o outro possa ser, possa ser ele mesmo sem críticas, sem julgamentos.
Construir esse lugar de vínculo terapêutico onde existe a possibilidade de cura e reparação de muitas experiências vividas pelos pacientes, onde busca-se reparar a dor da “criança ferida” do paciente, seus traumas e as falhas ocorridas em fases bastante precoces do seu desenvolvimento emocional.
A bela jornada com o seu paciente
Cada vez que você ajuda seu paciente a reconhecer um potencial genuíno dele, ele reconhece uma força, uma base para sustentá-lo a enfrentar os medos e as defesas que o separam da sua Personalidade Primária.
Em muitos momentos o paciente chega com uma autocrítica exagerada baseada em julgamentos externos e não baseada na sua verdade.
Nesses momentos, é papel do psicoterapeuta indagar sobre aquilo, ajudando a clarear para o paciente se aquilo que ele fala realmente é como pensa, como se sente.
Ajudá-lo a distinguir entre as expectativas externas das próprias expectativas e necessidades reais.
Por exemplo, uma jovem mãe que vem dizendo que não sabe mais o que fazer, que não dá conta, que já tentou de tudo, que seus filhos tem um comportamento difícil e todos ao seu redor a cobram que “resolva” isso, se sentindo incompetente, incapaz, péssima mãe. Quando, na verdade, ela já caminhou muito e tem se esforçado bastante para cuidar dos filhos da melhor maneira que pode, tem transformado hábitos para melhorar seu relacionamento com eles, tem encontrado formas de estar mais disponível para eles, tem buscado ajuda profissional, enfim, está se esforçando bastante para educá-los dentro dos seus valores e tem sim visto resultados.
Porém, quando vem a cobrança externa, ela esquece tudo isso e “acredita” que não fez nada.
Ajudá-la a relembrar tudo que tem feito é ajudá-la a fortalecer a sua Personalidade Primária.
- “Lembra da última sessão, o que mesmo você tinha me contado sobre as mudanças que vêm estabelecendo na rotina com as crianças?”
- “Ah, então você tem tomado atitudes referente à essa questão?”
- “E o que mesmo que você me contou que tem notado nelas?”
- “E isso faz sentido pra você?”
São formas de ajudar o paciente a reconhecer-se, validar seu comprometimento com sua essência e se fortalecer diante daquilo que vem sabotá-lo.
E, a partir daí, tudo que tem de maior potencial, mais força e vitalidade lá dentro vai surgindo e a cada aspecto que vai surgindo, vai dando força para novos aspectos aparecerem.
E se a gente vai reparando nos processos, percebe que coisas incríveis começam a acontecer. A pessoa vai se sentindo cada vez mais vibrante, mais feliz, mesmo que ela ainda tenha muitos aspectos defendidos/escondidos.
Há pouco tempo tive uma sessão emocionante com uma paciente. Está saindo de um caso de depressão e compulsão, que está vencendo, se sentindo vencer e entrando em contato com mais aspectos da sua Personalidade Primária.
Ela se descobriu extremamente amorosa com o outro, percebendo uma vontade de ajudar outras pessoas na mesma situação, entrou em contato com o seu vazio interior, que antes trazia desespero, podendo ver esse vazio de outros ângulos, vendo novas possibilidades, possibilidades positivas. Mas não porque se impôs isso racionalmente, mas sim porque nesse momento do processo ela já pôde sentir assim.
Ela conta de uma felicidade como nunca sentiu antes – mesmo sua realidade externa continuando difícil.
A Personalidade Primária se sente à vontade com ela mesma, é o tal do “bem estar independente” que ela tem.
E isso não tem a ver com egoísmo, com querer se isolar, de jeito nenhum. Ela fica tão bem com ela mesma, que ela tem um amor extremo pelo outro, uma vontade de fazer coisas boas pelo outro, de dar coisas boas ao outro. Um sentimento de se sentir conectado ao outro. Presenciar momentos assim, de contato com a grandiosidade da Personalidade Primária, não tem preço.
Estes aspectos não são inatingíveis, eles estão aí
E nosso trabalho é procurá-los, reconhecê-los e estabelecer contato com eles.
Ajudar o paciente a entrar em contato com seu próprio corpo, com sua “casa”, tornar esse corpo uma casa acolhedora para ele, é um primeiro passo para ajudá-lo a resgatar a sua Personalidade Primária das profundezas.
A Biodinâmica não segue nenhum curso predeterminado. Cada processo, cada sessão varia de acordo com as necessidades individuais de cada cliente naquele momento.
Ao trabalhar com as tensões do corpo e suas restrições, inicia um processo para libertar o núcleo vivo das amarras da neurose e abre espaço para surgirem as expressões corporais da pessoa em sua essência, da expressão de sua Personalidade Primária.
Olhar com olhar apurado para a postura que o paciente está diante de nós, perceber o que aquela postura tem a nos dizer. Se vemos ali ombros erguidos que nos chegam como uma expressão de medo, se percebemos uma respiração ansiosa – rápida e curta, podemos deixar que aquele corpo nos conte um pouco mais do que as palavras sobre como estão as coisas por ali, afinal é lá nesse corpo que mora a Personalidade Primária.
E a partir daí pequenas intervenções podem ajudar o paciente a restabelecer contato com o conteúdo interno.
Desde pedir para ele prestar atenção em como está seu corpo e o que esse corpo tem a nos dizer até, por exemplo, pedir para esvaziar todo o ar que está dentro dele expirando pela boca e depois deixar entrar o ar novo pelo nariz enchendo o peito, abrindo o diafragma e enchendo o abdômen.
Fechar os olhos e se conectar com o que acontece lá dentro. Imitar a expressão facial e a postura do paciente para que ele possa ver no terapeuta e dizer que sensação que passa para ele também é uma forma de fazer um “espelho” e ajudá-lo a se perceber.
Perguntas simples como “Como você está?” vão conduzindo o paciente nessa busca de contato com sua Personalidade Primária. Muitas vezes recebemos respostas como: “Eu estou aqui pensando no que vou fazer com isso” ou “Eu acho que fulano vai fazer tal coisa”.
É normal que a resposta venha pela via racional, mais conhecida, menos amedrontadora. E então, é preciso ter a sensibilidade de conduzi-lo a um lugar mais profundo, onde ele tem dificuldade de chegar.
Novamente com perguntas tão simples, que são difíceis para muitos responderem “E como você está se sentindo com isso?” E nos chegam respostas com “Ah, eu estou me sentindo mal.” Nesses momentos, o terapeuta pode auxiliar o paciente a nomear com clareza o que acontece com ele: “Conta melhor como é esse mal.” E ajudá-lo a descobrir se esse mal tem a ver com tristeza, com raiva, com decepção, com impotência.
E, a partir daí, é possível reconhecer uma porção profunda de si e compreender melhor o que acontece dentro dele, o que costuma fazer com isso, o que isso tem a ver com sua história e até que efeitos isso tem na sua vida.
“Que sensação vem no seu corpo?” – pode ser muito útil se dar conta que dentro de si tem um “buraco negro enorme que precisa ser preenchido”.
Todas essas expressões nos contam – a nós terapeutas e aos próprios pacientes – sobre a dinâmica que está acontecendo entre o ambiente externo, as relações, os pensamentos, as emoções, os comportamentos, o corpo que vive tudo isso.
Outra pergunta que pode ser reveladora é: “O que dá vontade de fazer com tudo isso?” Dessa forma, vamos dando um espaço de expressão para esse conteúdo reprimido e ele pode aparecer sem ser julgado, mostrando as reais feridas e necessidades do paciente – o que indica o caminho a ser seguido na sessão, no processo, na vida.
É sempre ele, o paciente, que nos traz a resposta.
Nascemos com o potencial da Personalidade Primária e podemos perder parte desse potencial quando ficamos distantes de nós mesmos.
Existe intrinsecamente algo de belo em cada pessoa
O foco do trabalho proposto por Gerda Boyessen é no núcleo saudável. Não é sobre a patologia, mas sobre a possibilidade de atualização dos potenciais humanos e de amadurecimento emocional através do processo terapêutico. Ela tem uma visão bastante positiva do ser humano, acreditando que existe intrinsecamente algo de belo em cada pessoa – a Personalidade Primária.
“O prazer de ajudar as pessoas a redescobrir sua Personalidade Primária — individual e ao mesmo tempo universal — é tão grande quanto o prazer que a própria pessoa sente em reexperimentá-la. É um trabalho sagrado, pois Homem e Mulher são criaturas sagradas, fruto do trabalho e da criação de Deus.” (Gerda Boyesen, em “A Personalidade Primária”- Cadernos de Psicologia Biodinâmica 3)
Adoro essa frase da Gerda!
Não é mesmo um trabalho sagrado?
Se você é capaz de se encantar com a essência humana quando a vê ressurgir, então também deve sentir assim, como Gerda sentiu, como eu sinto.
É um trabalho de fé na vida, fé na essência humana.
AUTORA
LUCIANA CALAZANS
bemviveredesenvolver@gmail.com
Luciana Calazans quer compartilhar com você essa abordagem apaixonante que integra corpo e emoção e mostrar que é possível, sim, buscar e criar formas mais eficazes de ser e estar no mundo a partir da própria essência. Encantada pela capacidade humana de transformação e pela sua força vital, acredita no desenvolvimento do potencial latente no indivíduo ou grupo, pessoal ou profissional – no Desenvolvimento de Pessoas. É Psicóloga (CRP 06/85520), Psicoterapeuta Biodinâmica e Coach de Desenvolvimento de Pessoas. Co-fundadora e Diretora de Projetos da Bem Viver e Desenvolver.