Hoje é celebrado o dia internacional da mulher.

E daí?

Antes de continuar e, principalmente, se você ainda acha que estabelecer um dia para isso é bobagem, vamos ficar todos na mesma página: oficialmente, os mesmos direitos civis são estabelecidos tanto para homens quanto para mulheres.

Mas, infelizmente, isso não é tudo:

  • 50,3% dos homicídios de mulheres são cometidos pelo marido ou parceiros segundo o Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres. No Brasil, os dados de 2013 eram de que a cada uma hora e meia uma mulher morre por feminicídio. Neste item, uma questão importante: enquanto mortes de mulheres brancas caíram 10% na década da pesquisa, a morte de mulheres negras cresceu 54%. Questões como essa se entrecruzam e precisam ser consideradas, visto a costumeira invisibilidade da questão.
  • No Brasil, desde 1933, as mulheres podem votar e se candidatar. Ainda assim, apenas 9% dos cargos políticos são ocupados por mulheres. Só para você ter uma ideia, no ranking mundial da participação feminina no parlamento, estamos atrás do Afeganistão – e de outros 116 países.
  • Segundo o Fórum Econômico Mundial, o Brasil tem uma participação feminina muito boa nas escolas, posições profissionais e técnicas: 130 mulheres para cada 100 homens no ensino superior. Mas, uma pesquisa de 2012 feita com laboratórios de pesquisa ponta pela Academia Nacional de Ciências dos EUA (PNAS), mostra que currículos enviados com nomes masculinos recebem mais recomendações e propostas de salários mais altas. Entramos na questão da diferença salarial: essas mulheres que estudaram e que são profissionais, ainda recebem salários menores pelo mesmo trabalho.

Aqui em Santa Catarina, entre pessoas com o nível superior de escolaridade, o percentual de rendimento feminino em relação ao masculino é de 65% – pouco mais da metade. Em São Paulo o número é um pouco menor. Esses dados são de 2015 e você pode pesquisar os dados da sua cidade e do seu estado neste link. No pós 2015, continuaremos a acompanhar esses e outros dados com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis da ONU, que possuem um item específico para o desenvolvimento da igualdade de gênero.

E na psicologia? Bom, 9 em cada 10 psicólogos são mulheres. Apesar das mulheres terem um rendimento mensal 30% superior aos dos homens (enquanto que para outras ocupações de ensino superior o rendimento masculino é 70% maior que o feminino) o valor da hora trabalhada dos homens é 36% maior, ou seja, as mulheres trabalham mais horas no mês e por isso tem um rendimento maior.

Esses dados são de 2016 e podem ser consultados no Levantamento de informações sobre a inserção dos psicólogos no mercado de trabalho brasileiro.

Selecionei estes poucos dados, mas podemos continuar aqui nos comentários com mais uma penca de motivos pelos quais simbolicamente é importante parar neste dia e pensar sobre como estamos utilizando nosso conhecimento e nossas ferramentas para transformar essa realidade.

Mulheres, ciência e profissão

Agora sim! Hoje é dia de fazer coisa de mulher:

Não me surpreende se você, homem ou mulher, não conhecer alguma dessas mulheres aí em cima. Somos feitos de histórias, mas a invisibilidade das mulheres e sua importância para o desenvolvimento da humanidade ainda é muito grande.

E na psicologia isso não é diferente.

Cabe lembrar aqui que perdurou durante muito tempo a proibição do acesso à educação formal para as mulheres. Tiveram suas patentes roubadas apenas por serem mulheres e pelo mesmo motivo não foram aceitas nas universidades. Quando aceitas, ou em posição de destaque, frequentemente a sua vida íntima ou sua aparência costumam chamar mais atenção do que a sua produção teórica.

Olha que fato interessante – e triste – em 1882, Christine Ladd Franklin foi a primeira psicóloga mulher a completar todos os requisitos para um PHD na Universidade Johns Hopkins, nos EUA. Sabe quando ela recebeu o seu diploma? Apenas em 1926. Ela faleceu em 1930.

Além disso, alguns psicólogos do século XIX (entre eles Hall, Thorndike, Cattel e Freud) fizeram o desserviço de aceitar e por vezes disseminar a crença errônea da superioridade intelectual do homem.

Olha que bizarro: uma das teorias da época falava que educar as mulheres traria danos físicos e emocionais à elas, como por exemplo, perturbar o ciclo menstrual e o impulso maternal, o que seria muito desvantajoso para a humanidade. O livro de um médico de Harvard que disseminava essas crenças totalizou 17 edições, sendo popular de 1873 até 1886.

Recente né?! Faz 130 anos e isso na história não é quase nada.

Ainda bem que uma mulher, Leta Stetter Hollingwort, referência no estudo da psicologia das mulheres, refutou essa hipótese com suas pesquisas, chegando a conclusão de que são atitudes sociais – como a discriminação e o machismo, por exemplo – e não fatores biológicos que impediam as mulheres de muitas realizações na ciência e na sociedade.1

Na psicologia, por exemplo, apenas em 1982, instituições passaram a aceitar algumas poucas mulheres nos seus programas de pós-graduação, cerca de duas décadas depois do reconhecimento da psicologia como disciplina científica. Em 1980 a porcentagem de mulheres que compunham o corpo docente de psicologia era praticamente a mesma de 1944: 26%. O número aumentou atualmente, mas, ainda temos muito o que avançar.2

De qualquer forma, como Bernstein e Russo (p.131) já disseram:

“É provável que nunca venhamos a saber a quantidade de trabalhos feitos por mulheres, mas creditados a homens; quantas notas de pé de página de agradecimento não deveriam se tornar o reconhecimento de co-autorias, quantas vezes a co-autoria não é na verdade autoria e quantas vezes era o co-autor masculino que deveria ter merecido a nota de pé de página”.

Ainda assim, superando todo o contexto adverso, falaremos agora de grandes mulheres que fizeram a diferença na psicologia.

Mulheres que fizeram história na Psicologia

Aqui, apenas uma pequena amostra, de mulheres brasileiras e estrangeiras que merecem ser reconhecidas por sua contribuição à nossa ciência e profissão. Obviamente esses exemplos não dão conta da totalidade das suas contribuições tampouco da expressão feminina na psicologia.

Serve para lembrarmos e celebrarmos estas conquistas!

Annita de Castilho e Marcondes Cabral 

É considerada a criadora do primeiro curso de psicologia no Brasil, quando, na USP, lutou pela autonomia da psicologia que até então era um pequeno núcleo na seção de filosofia. Em 53, junto de outros profissionais criou o anteprojeto encaminhado ao MEC que acabou resultando na promulgação da Lei 4.119/62 que regulamentou a profissão de psicólogo e criou cursos de psicologia em várias universidades do país. Ainda em 53 organizou o I Congresso Brasileiro de Psicologia. Também fundou a atual Associação de Psicologia de São Paulo (ASPSP) que teve seu primeiro boletim publicado em 54. Em 58 criou o primeiro curso de Especialização em Psicologia Clínica da Cadeira de Psicologia, promovendo aporte de ideias da Europa e dos EUA e no mesmo ano, foi presidente da Associação Brasileira de Psicólogos (ABP). Depois de várias outras contribuições, afastou-se da USP em 1970 e faleceu em São Paulo no ano de 1991.

Carolina Martuscelli Broi 

Pesquisadora na área de psicologia experimental, foi a psicóloga com o registro número 01 no conselho e fez parte da comissão organizadora de regulamentação da profissão. Recebeu o prêmio “Fred Keller” da Associação Americana de Psicologia (APA). Ocupou cargos de presidência em diversas associações e sociedades brasileiras de psicologia e é considerada presidente de honra da SBPC, com a filosofia de que o conhecimento acadêmico deveria estar mais próximo do povo. Veja um recorte de sua fala em uma entrevista: “O leigo não tem contato com o conhecimento científico que existe em psicologia, mas é bombardeado de ideias vagas, que acabam formando uma mixórdia sem sentido. (…) A minha preocupação com divulgação é essa: é preciso melhorar a vida das pessoas, não apenas em termos de tornar os produtos gerados pela ciência disponíveis, mas também torná-las mais críticas em relação ao mundo em que vivem. Para isso é preciso informá-las, para que elas entendam o que é a ciência e a própria transformação que ela está promovendo no mundo atual.”.

 Silvia Lane

Referência na área de psicologia social, começou a lecionar em 65 e três anos depois participou de um movimento que queria oferecer experiências mais enriquecedoras na teoria e prática da psicologia. Ocupou vários cargos de direção acadêmica na PUC e fundou a Associação Brasileira de Psicologia Social em 1980. Além disso, publicou 4 livros, 24 capítulos e apresentações de livros, 29 artigos em periódicos, 4 entrevistas e 12 publicações em Anais de Congressos. Sobre ela, Sérgio Ozella deixou seu depoimento: “A gente passava a ser colega, ela não deixava ninguém ficar dependendo dela. Ela fazia tudo para que a gente criasse as próprias linhas de trabalho, criasse a própria produção. Ela sempre deixou muita autonomia. Esse vínculo a gente não conseguia perder, a gente a procurava sempre para uma consulta ou outra.”.

Nise da Silveira

Uma das primeiras mulheres brasileiras a se formar em medicina, se especializou em psiquiatria e tornou-se referência no movimento da reforma psiquiátrica. Atualmente é muito conhecida pelo filme “Nise – O Coração da Loucura” e seu trabalho com o Museu de Imagens do Inconsciente, utilizando a arte-terapia. Depois da fundação do museu, em 1956, criou a Casa das Palmeiras, uma clínica voltada à reabilitação dos pacientes psiquiátricos. Aluna de Jung, foi pioneira da psicologia jungiana no Brasil, também na pesquisa das relações emocionais entre pacientes X animais e na terapia ocupacional. Foi co-fundadora da Sociedade Internacional de Expressão Psicopatológica e recebeu diversas homenagens e reconhecimentos nacionais e internacionais, além de inspirar a criação de museus, centros culturais e instituições terapêuticas. Segundo ela mesma: “(…) outra vez, um paciente me mostrou que eu estava no caminho certo, quando certa vez me ofereceu um coração em madeira e no centro do coração um livro aberto. Quando me ofereceu isso, me disse: ‘um livro é muito importante, a ciência é muito importante, mas se se desprender do coração não vale nada’. Tudo que eu sei de psiquiatria aprendi com eles.”.

Melanie Klein

Uma das maiores psicanalistas da história, tornou-se membro da Sociedade Britânica de Psicanálise em 1927 e em 1932 publicou seu livro “Psicanálise de Crianças” e três anos depois o seu artigo “Uma contribuição à psicogênese dos estados maníaco-depressivos” marcou seus conceitos como um dos mais importantes e inovadores na psicanálise depois da descoberta do inconsciente. A partir da sua teoria construiu-se a escola kleiniana, ampliando a percepção da vida mental primitiva e infantil, abrindo novos horizontes para a psicanálise. Melanie Klein estudou medicina, arte e história, mas não completou nenhum dos cursos universitários. É reconhecida por sua contribuição teórica no início do século XX, época bastante austera para a participação feminina na ciência.

Zerka Moreno

Co-fundadora do psicodrama e referência no desenvolvimento da psicoterapia de grupo. Formou diversos profissionais e até 1982 foi presidente da Sociedade Americana de Psicoterapia de Grupo e Psicodrama e diretora do Instituto Moreno em Beacon, local onde liderou a condução das atividades, o programa de treinamento em psicodrama e regeu as publicações. Suas produções são difíceis de distinguir das de seu marido, Jacob Levy Moreno. Autores apontam a integração sem precedentes do casal e também aspectos deste desfecho: “Aos poucos, Moreno ficava mais e mais dependente de Zerka e a tiranizava muito. Apesar da nossa grande amizade, poucas vezes a ouvi queixar-se, e ela sempre cuidou dele com amor.”.

Laura Perls

Psicóloga, psicoterapeuta alemã e doutora em ciências, lia grego, latim, conhecia muita literatura e música, era dançarina e mãe. Desenvolveu a Gestalt Terapia, junto com seu marido Fritz Perls. Eles se conheceram quandos ambos trabalhavam no Instituto de Psicologia em Frankfurt e segundo ela mesma: “tudo era comunicado completamente entre os dois, sendo, pois, impossível separar quem pensou primeiro o que”. O livro “Fome e Agressão” assinado por Fritz, marca em seu prefácio os créditos à Laura para comentários, contribuições e o reconhecimento por alguns capítulos escritos por ela, assim como continuou a contribuir nas produções seguintes mas, nunca lançou nenhum livro individualmente. Laura Perls dirigiu as atividades e a formação do Instituto de Gestalt Terapia de Nova York dos anos 50 aos 80.

Uma linha do tempo muito bacana foi criada mostrando a presença das mulheres da psicologia nos estados EUA e no Canadá, está em inglês, mas a iniciativa vale um clique, você pode acessar neste link.

Então, psicologia é coisa de mulher?

Depois disso tudo, preciso dizer que sim, psicologia é coisa de mulher. Mas, não é só. É coisa de mulher, de homem, de gente.

Não posso finalizar sem lembrar do caso de um amigo querido que no final da sua adolescência passou por um processo de orientação profissional com uma psicóloga aqui da minha cidade. Ele queria ser psicólogo, mas ouviu da profissional à sua frente que esta era uma “profissão de mulher”, que “não dava dinheiro” e que, pelas suas ótimas habilidades de comunicação deveria seguir a profissão de jornalismo.

Ele seguiu a graduação em jornalismo e atualmente não exerce a profissão. Por favor, não seja esse psicólogo ou essa psicóloga que reproduz esse tipo de estereótipo.

Eu não sei para que você faz psicologia, estuda e aplica seus conhecimentos, mas eu realmente gostaria que depois de vermos essas informações, nós todos pudéssemos nos questionar sobre o nosso papel prático e ao reproduzir certos comportamentos e discursos. Independente de qual seja a sua abordagem, você conhece as mulheres importantes para o desenvolvimento dela? Procure saber, estou certa de que há alguma e reconhecê-la é um movimento importante.

Entre nós, vamos fechar um combinado? Vamos falar mais destas e das outras mulheres decisivas na sua área de estudo ou de atuação e vamos complementando juntos este material. Que tal?

E não apenas das mulheres da história passada, mas também da história atual. A sua e a da sua colega.

Continuemos com coragem:

“É preciso ter coragem para ser mulher nesse mundo. Para viver como uma. Para escrever sobre elas.”

AUTORA

DAIANA RAUBER

Me formei em psicologia na Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI em 2014 e sou especializanda em Psicanálise e Análise do Contemporâneo pela PUC-RS.

Desde então, construo um percurso com a psicanálise para meus atendimentos clínicos, baseado no tripé psicanalítico: formação teórica, supervisão e análise pessoal.

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