Não tem assunto que dê mais pano para manga do que falar dos sonhos! Seja pelo lado do misticismo que os envolvem ou até mesmo pelo certo ceticismo por parte de alguns.

Mas os sonhos precisam ser explorados, ampliados e explicados na mesma medida de suas potencialidades curativas para o ser humano, além de ser uma ferramenta fundamental para a prática clínica do Analista Junguiano. E não falo pelo viés místico, falo puramente pela perspectiva empírica da Psicologia Analítica.

Esse assunto é tão complexo, que resolvi dividir esse artigo em duas partes. Na primeira eu repasso o método interpretativo proposto pela Psicanálise e o pressuposto científico neurológico dos sonhos. Na segunda, falo dos aspectos práticos na clínica junguiana.

Parte 1

Começando pela Psicanálise

A maioria de nós sabe que o pioneiro na arte de compreender de maneira sistematizada os sonhos, foi o Dr. Sigmund Freud. Falo “de maneira sistematizada”, porque o homem primitivo já interpretava os sonhos a sua maneira, mas esse assunto deixamos para depois.

O histórico livro redigido por Freud, “A interpretação dos sonhos”, foi o que fez com que Jung se aproximasse da Psicanálise, e mantivesse relação com Freud por alguns anos, assunto que já abordei no vídeo “Jung, vida e obra” e no artigo “Jung, um discípulo de Freud?”.

Na visão de Freud, e aqui me refiro a Psicanálise clássica, não à neo-Psicanálise, os sonhos se tratavam de conteúdos ou desejos que foram reprimidos pelo sujeito, ficando subjugados ao inconsciente, que os realizavam por meio dos sonhos.

Em outras palavras, na ótica psicanalítica, tudo o que era sonhado, em algum momento tinha sido conteúdo da consciência, que reaparece metaforizado nos sonhos.

Partindo dessa premissa, e aplicando a visão sistematizada proposta por Freud, passou-se a buscar o entendimento do que os sonhos tinham a dizer, que tipo de “mensagem” o inconsciente estava mandando à consciência.

Quando escutava os relatos de sonhos de seus pacientes, Freud os interpretava, isto é, analisava criticamente qual era a metáfora encenada na mente durante o sono. Neste caso, interpretar, envolve a subjetividade do interpretador, mas guiada por uma relativa sistematização proposta pelo método psicanalítico.

O viés de Freud era pela energia sexual, portanto, suas interpretações sempre tinham essa temática: realização, pulsão, sexualidade e outros.

E assim ele moldou, refinou e defendeu até a morte seu método interpretativo, o qual sobrevive até hoje.

Agora vamos à Neurologia…

No final do século 19 e início do século 20, estávamos em um momento de mundo que era meio Idade-Média, meio industrialização, e aparentemente, a anos-luz das tecnologias que hoje permitem com que vejamos em detalhes a atividade cerebral. É nesse período que germina a Psicanálise e a Psicologia Analítica.

Paralelamente, a medicina avançou muito no seu método científico sensorial, abraçando a tecnologia como ferramenta de trabalho e mapeamento corporal por imagens.

E assim, foi constatado que o cérebro possui atividade noturna intensa, e que os sonhos são combinações estratificadas de emoções, memórias, cognições, etc., que de alguma forma são reorganizadas e/ou sedimentadas durante o sono, na fase REM (Rapid Eye Movement).

Nós estamos dormindo, mas o cérebro está amplamente ativado. Logo, sonhar é uma atividade normal, fisiológica, e de certa forma, observável no que tange sua atividade, mas não em seus conteúdos. Estes são conhecidos somente pelos relatos do sonhador.

Face a essas situações, crio duas hipóteses excludentes entre si:

Há uma contradição entre o que a Psicanálise clássica propõe e o que a Neurologia moderna descreve, pois se as atividades cerebrais visam acomodar reminiscências fragmentadas, inviabiliza a prerrogativa de que eles seriam pulsões ou realizações do inconsciente. É só um ajuste fisiológico. Ponto.
Sob outra ótica, poderíamos integrar e as visões, assumindo que as atividades cerebrais detectadas pela Neurologia, seriam justamente as pulsões, realizações e aspectos da sexualidade descritas por Freud, sendo estas passíveis de interpretação.

Agora sim, o que a Psicologia Analítica tem a dizer sobre tudo isso?

Bem, a Psicologia Analítica visa compreender o homem de maneira multidimensional, trazendo para essa visão, sua natureza espiritual, arcaica e social, não o reduzindo a um amontoado biológico que num lapso físico se uniu organizadamente e criou a vida.

Considerando esse viés, a raça humana deixa de ser um corpo animado que só pode ser conhecido pela ciência sensorial. Ainda que esse dado seja impreciso, o Homo Sapiens tem cerca de 150.000 anos de existência, ao passo que o mapeamento do cérebro por imagens tem menos de 100 anos.

Mas o que isso tem a ver com sonhos?

Bem, a resposta é longa, mas vamos lá!

Assim como as heranças genéticas nos compõem biologicamente, Jung identificou a existência dos arquétipos (veja meu vídeo sobre arquétipos e inconsciente coletivo), que são as imagens psíquicas primordiais que habitam a alma humana.

Trazemos em nossa composição humana um histórico que é social, relacional, espiritual, vivencial, sensorial, intuitivo, dentre vários outros aspectos, que possuem predisposições inatas.

Ao longo desses 150.000 anos, o cérebro se desenvolveu, mas não significa que ele deixou de ter em sua estrutura aspectos que são mais primitivos, desprovidos das regras sócio-políticas a que somos submetidos atualmente, vide meu artigo sobre a persona.

Essa socialização, dentre várias coisas, nos ofertou gradativamente um formato complexo de nos comunicarmos. Me refiro aos idiomas mesmo, português, inglês, sueco, por aí vai. Mas a nossa história, nosso DNA e nossos arquétipos, nos acompanham a 150.000 anos, independentemente da linguagem que utilizamos para nos comunicar.

Dei essa volta toda para dizer que sonhar é um ato de comunicação da psique, mas uma comunicação primitiva, espontânea, sem máscaras, sem padrões ortográficos ou gramaticais. Seja você alemão, japonês ou brasileiro, você sonha.

A atividade cerebral de sonhar, potencialmente, está dentro de nós, desde que somos Homo Sapiens (ou até mesmo hominídeos, quem sabe?). Sonhar é parte integrante do homem, onde são produzidos conteúdos que podem ter cunho arquetípico e atemporal.

Nesse sentido, assumo que a minha a hipótese número 2, que comentei lá em cima, é a que mais se adequa nessa a essa visão histórica e holística do homem. As atividades neuronais noturnas, ao reorganizar as reminiscências e ativar as emoções, produzem conteúdos que são passíveis de interpretação – mas ela é metafórica, sempre!

Mas a forma dessa interpretação é que precisa ser melhor compreendida à luz da Psicologia Analítica, por isso vamos a parte 2 desse artigo. Antes de seguir, recomendo fortemente a leitura do livro “A natureza da psique” de Jung, onde ele faz uma imersão na arqueologia psíquica.

Parte 2

Ampliação dos sonhos

Já sabemos sumariamente o que são os sonhos sob o âmbito fisiológico e também como nasceram as primeiras propostas SISTEMATIZADAS de sua compreensão (porque o homem primitivo SEMPRE interpretou seus sonhos).

Em seu embate teórico com Freud, Jung questionou sua fixação em querer explicar os fenômenos da psique somente pela energia sexual. A partir dessa discordância que nasceu o livro “Símbolos da transformação” de Jung, leitura recomendada também.

Nesse livro, Jung afirma que os sonhos revelam conteúdos psíquicos que podem tanto ser aspectos reprimidos, tal qual Freud postula, assim como uma comunicação do inconsciente com a consciência, mas por meio de símbolos, de metáforas, que expressam o momento de vida da pessoa, sejam esses de cunho sexual ou não.

Na verdade, a temática sexual para Jung tem a mesma importância que qualquer outra temática, nem maior, nem menor, nem mais ou menos importante, a mesma.

Jung também percebeu que os sonhos tinham temáticas muito parecidas, independentemente do local ou país que a pessoa vivia, ou em outros termos, os sonhos eram potencialmente arquetípicos, com temas comuns a todas as pessoas.

Mas esses temas coletivos são encenados pelas nossas experiências individuais. Exemplo: ao sonhar com meu pai, não estou literalmente sonhando com ele, e sim com os aspectos do meu inconsciente que formam a imagem interna que tenho de pai.

Contudo, há algo nesse sonho que é essencialmente arquetípico, pois conhecendo ou não, gostando ou não, todos temos pai e mãe. No livro “Arquétipos e o inconsciente coletivo”, Jung analise uma série de sonhos de uma paciente, e aborda com profundidade os temas arquetípicos que são revelados neles.

E é nesse ponto, que a palavra interpretação ganha outra aplicação na clínica junguiana. Na verdade, o que um terapeuta junguiano faz, não é interpretação de sonhos e sim AMPLIAÇÃO dos sonhos.

Ampliação?

Exatamente, quando um paciente traz um sonho, um dos maiores erros que se pode cometer é interpretar o sonho, ou tentar atribuir uma metáfora que a nós, terapeutas, parece apropriada para a história do paciente. Isso é um erro, e também é uma diferença significativa do formato psicanalítico de interpretação.

Em que consiste essa ampliação?

Basicamente, perguntar!

Quando o paciente traz o sonho, nosso papel será esgotar todos os sentimentos, percepções, dores, alegrias, impressões, reações que o sonho lhe causou, através de perguntas. Muitas perguntas.

Vejamos esse exemplo real: uma paciente minha, jovem, me trouxe um sonho em que estava numa casa sozinha e homens tentavam invadir. Sua única saída era fugir pela praia em direção a um oceano, repleto de jacarés.

A partir daí, seguem as perguntas…

Como era a casa que você estava? Lhe era uma casa familiar? Onde ficava essa casa? Essa casa te lembra alguma casa que você já foi? Com o que você associa essa casa? Quem eram esses homens? Eles tinham rostos conhecidos? Você conseguiria explicar por que eles queriam invadir sua casa? Qual sua relação com o oceano? Qual é sua experiência com praias? O que praia te lembra? Você já viu um jacaré? Que sentimento um jacaré te causa? Te parece normal que jacarés estejam no oceano, na água salgada?

E por aí vai…

É claro que essas perguntas não devem ser feitas em formato de inquérito, até porque a resposta do paciente é que vai direcionar o diálogo, oferecendo à conversa terapêutica o surgimento de novas perguntas.

Perceba que isso não é interpretar, e sim ampliar, buscar significados do sonho que estejam ligados à subjetividade do paciente e não à do terapeuta. Não se surpreenda com respostas lacunares do paciente, como “não sei”, “não faço ideia”.

Isso é normal. E com o tempo e desenvolvimento de suas habilidades terapêuticas, você vai delicadamente fazendo com que exista um ato reflexivo do paciente sobre seus sonhos.

Lembre-se que na clínica, a linguagem simbólica está à frente das literalidades, portanto, um simples “não sei”, pode revelar uma dificuldade do paciente de entrar em contato com aquele conteúdo específico do inconsciente.

Porém, além de tudo que já descrevi, e isso é o que faz a Psicologia Analítica ter uma visão única dos sonhos, eles também devem ser compreendidos à luz dos símbolos que se expressam.

Nesse ponto, há uma certa dose de interpretação dos aspectos arquetípicos.

Volto no exemplo do sonho acima, com foco no jacaré. No sonho ele terá duas compreensões possíveis: 1) a que se conecta com o momento de vida do paciente e, 2) a arquetípica. O que NÃO se pode fazer, é pressupor que o conteúdo de um sonho é sempre arquetípico.

Por exemplo, simbolicamente, o jacaré pode ser associado com o dragão, que tem interpretações tanto sob aspecto simbólico europeu, em que ele é um guardião severo do tesouro e de certa forma diabólico, ou pelo aspecto simbólico chinês, em que o dragão inspira ordem e prosperidade.

Mas esse jacaré, no contexto do paciente, pode representar sua mãe, seus medos pessoais, sua resistência de entrar em contato com sua sombra, diversos temas. Portanto, antes de se ir para qualquer interpretação simbólica, é preciso esgotar a visão do próprio paciente sobre seu sonho. Depois disso, se exploram os símbolos.

Foi por esta razão que Jung se aproximou muito da mitologia, pois observou que ela remonta de alguma forma todas as temáticas psíquicas e existenciais da humanidade.

Um dos maiores especialistas em mitologia que já existiu, o Mitólogo Joseph Campbell, dizia que “os mitos são as respostas para as perguntas que ainda não fizemos”.

Os sonhos expressam temáticas que são mitológicas, recorrentes e coletivas. Associar um sonho com mitos e símbolos, ajuda o processo terapêutico, pois eles guiam quais são os potenciais caminhos que a terapia tomará.

Agora, a pergunta de um milhão de dólares:

Como descobrir a que mito ou símbolo um sonho está associado?

Aí amigos junguianos, voltamos ao que eu já falei aqui na Academia em outros conteúdos: precisamos estudar muito, muito mesmo! Se optamos pelo caminho da Psicologia Analítica, ler, descobrir, investigar, experimentar, tem que fazer parte da nossa rotina de vida.

Precisamos construir repertório, isso é fundamental no nosso processo contínuo de desenvolvimento como terapeutas junguianos. E isso não tem data, hora e dia para acabar. É contínuo, é o fluxo da profissão que escolhemos.

Mas para aliviar essa dor que eu coloquei agora, um livro de cabeceira que você deve ter, é o Dicionário de Símbolos do Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. Seguramente este é um dos dicionários mais completos em língua portuguesa. Nele, os autores dispõem o significado simbólico de diversos verbetes, mas não é uma definição isolada, restrita. Eles exploram as definições que o símbolo tem para diversas tribos, raças, países, etc.

Em nenhum lugar desse dicionário, você encontrará o significado do sonho do seu paciente. Ele só dará mais repertório para que você amplie a compreensão sob o âmbito simbólico.

Se você tem um “Dicionário de Sonhos”, pode jogar fora. Agora. Agorinha.

Nenhum dicionário no mundo pode compreender melhor o sonho do que seu próprio paciente. Por isso que o que fazemos na clínica é ampliar o sonho e não interpretar.

Aliás colega junguiano, o sonho não é algo desejável na clínica junguiana, ele é necessário, é nossa ferramenta básica de trabalho. Nós precisamos pedir para que o paciente traga sonhos. Alguns deles resistem, é fato, mas isso também faz parte do processo psicoterapêutico.

Nós não podemos desistir. Precisamos pedir e de alguma forma, mas não de maneira imperativa, exigir que eles tragam sonhos. A linguagem do inconsciente, aquela que vai muito além da nossa linguagem formal, é o mais próximo que conseguimos chegar dos conteúdos sombrios do paciente.

Não significa que toda a sessão tem que trazer sonho novo, não é isso, mas é preciso que haja alguma regularidade, até para que você, terapeuta, perceba como os conteúdos inconscientes se organizam na psique do paciente. Os sonhos evoluem a medida que o processo terapêutico evolui.

Além do mais, uma vez contado um sonho, ele já faz parte do campo de análise. Pode passar duas, três sessões, vinte, e de repente o paciente te conta alguma coisa e imediatamente você associa com o sonho que foi relatado algum tempo atrás, permitindo novas ampliações.

Voltando aos aspectos fisiológicos dos sonhos, mapeados pela neurologia, há um ponto que ela não conseguiu descrever claramente: quais são os critérios que fazem com que o cérebro emule a cena X em vez da cena Y no sonho, durante a tempestade neuronal noturna.

E aí amigo junguiano, a Psicologia Analítica explica!

Mas ela não explica da maneira sistematizada e sensorial como a ciência “moderna” preconiza. Ela explica pelo empirismo que o processo Analítico nos oferece.

A cada sonho trazido pelo paciente, a cada conteúdo ampliado, compreendido, elaborado e ressignificado, percebemos a clara mudança de atitude da pessoa perante sua vida.

Além do mais, os sonhos se apresentam de maneira dúbia ao mesmo tempo que seus conteúdos possuem uma causa, que tem a ver com o momento de vida da pessoa, eles também possuem uma finalidade, isto é, eles propõem um caminho, um trajeto futuro, rompendo com aquela definição reducionista de que a terapia olha para o passado, enquanto “outras abordagens” humanistas olham para o futuro.

Na Psicologia Analítica não é bem assim.

Até porque, se pararmos para pensar, o tempo também é um construto teórico, não é mesmo?

Ufa!

Esse foi um dos artigos mais longos que já escrevi para a Academia, mas me pareceu necessário esse aprofundamento. Espero que apreciem a leitura, tanto quanto eu gostei de escrever.

Mas antes de me despedir, seguem as recomendações que sempre faço:

Peça para seu paciente anotar os sonhos, mas vamos modernizar isso… não precisa pedir para ele ter uma cadernetinha ao lado da cama. Claro que isso pode, mas uma sugestão, é ele gravá-lo via nota de voz no celular (TODOS adoram essa dica). Outra opção, é ele redigi-lo e enviar por e-mail a você, não para que você “analise” por e-mail, é só uma forma de registrá-lo para que vocês conversem sobre no setting terapêutico;

Assista o filme: A origem, com Leonardo DiCaprio;

Livro: além dos que já citei no decorrer do artigo, recomendo “O homem e seus símbolos”, em que Jung escreveu com outros colaboradores.

Um grande abraço, e até mais!

Rafael Rodrigues
Psicólogo, pós-graduado em Administração e Psicologia Junguiana, além de Analista Junguiano em formação. Psicólogo clínico e palestrante. Como uma transmutação alquímica, fez de sua experiência corporativa, combustível para a criação da Solução Ativa e mergulho no estudo da obra de C.G. Jung. www.solucaoativa.com.br

Deixe uma resposta